Mostrar mensagens com a etiqueta Oliveira Martins. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Oliveira Martins. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 15 de abril de 2008

Bento Caraça - Militante da Cultura, Militante da liberdade


Bento de Jesus Caraça

Militante da Cultura, Militante da Liberdade

Julgo que é uma acto de justiça uma Escola portuguesa prestar homenagem à memória do grande educador que foi o Professor Bento de Jesus Caraça. Uma escola Secundária, cujo patrono é Oliveira Martins, encara certamente com uma atenção especial a prestação de um tal acto de Justiça; porque, na vida de Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845 – 1894) en na vida de Bento de Jesus Caraça (1901 -1948), há alguns aspectos importantes que são comuns.

Na verdade, ambos tiveram que enfrentar e vencer grandes dificuldades económicas para se cultivarem, tiveram de se empregar mito cedo para sobreviverem. Oliveira Martins teve de abandonar os estudos oficiais que frequentava com vista alcançar um diploma em Engenharia Militar, em consequência do falecimento do seu pai, vitimado pela epidemia de febre-amarela (1857) e da falta de recursos de sua mãe; tornou-se empregado comercial com cerca de 15 anos de idade. Bento Caraça, filho de trabalhadores rurais, teve de começar muito cedo a exercer funções docentes para custear os seus estudos: primeiro como explicador; depois, tendo apenas 18 anos de idade, como 2º assistente do 1º grupo de cadeiras (Matemáticas SuperioresÁlgebra Superior; Princípios de Análise Infinitesimal, Geometria Analítica) do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, actualmente Instituto Superior de Economia e Gestão.

Um e outro, dotados de invulgar inteligência, de grande força de vontade e sede de cultura, foram essencialmente autodidactas. Um e outro souberam vencer as limitações do autodidactismo, pela convivência com os trabalhadores intelectuais mais activos do seu tempo, mais preocupados em acabar com o isolamento desde há tanto tempo imposto ao nosso País pelas classes economicamente dominantes; isolamento, portugueses.

*

Lembrar que Oliveira Martins fez parte da comissão promotora das célebres Conferências Democráticas que tiveram lugar em 1871 no Casino Lisbonense e, por isso, ficaram sendo conhecidas como Conferências Democráticas do Casino, juntamente com Adolfo Coelho, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano Vieira de Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Manuel de Arriaga, Salomão Saragga, Teófilo Bragae Antero de Quental.

Essas conferências «sobre matérias políticas e sociais» proclamavam no seu programas, datado de 1871:

«Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve também ser o assunto das nossas constantes meditações.

- Abrir uma tribuna, onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este momento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos;

- Ligar Portugal com o movimento moderno fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;

- Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam, na Europa;

- Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna;

-Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa.

Tal é o fim das conferências democráticas.

A primeira Conferência teve lugar a 27 de Maio de 1871 e coube a Antero de Quental realizá-la. Deu-lhe o título “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos Três Séculos” e começa assim:

«A decadência dos povos da península nos últimos três séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história oferece aos olhos do historiador filósofo.»

E mais adiante, Antero declarou:

«Durante 200 anos de fecunda elaboração, reforma a Europa culta as ciências antigas, cria seis ou sete ciências novas, a anatomia, a fisiologia, a química, a mecânica celeste, o cálculo diferencial, a crítica histórica, a geologia, aparecem os Newton, os Descartes, os Bacon, os Leibniz, os Harvey, os Buffon, os Ducange os Lavoisier, os Vico – onde está, entre os nomes destes e dos outros verdadeiros heróis da epopeia do pensamento, um nome espanhol ou português? Que nome espanhol ou português a liga à descoberta duma grande lei científica, dum sistema, dum facto capital? A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência; foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos.

(…) Pelo caminho da ignorância, da opressão e da miséria chega-se naturalmente, chega-se fatalmente à depravação dos costumes. E os costumes depravaram-se com efeito.

(…) Tais temos sido nos últimos três séculos: sem vida, sem liberdade, sem riqueza, sem ciência, sem invenção, sem costumes.»

Das várias conferências programadas, apenas se realizaram quatro. Além da realizada por Antero, tiveram lugar as seguintes: A Literatura Portuguesa Contemporânea, por Augusto Soromenho; O Realismo como Expressão de Arte, por Eça de Queirós; A Questão do Ensino, por Adolfo Coelho. Quando ia realizar-se a 5ª conferência, intitulada Os Historiadores Críticos de Jesus, por Salomão Sáragga, as pessoas que iam assistir encontraram as portas do casino fechadas e nelas estava afixada uma portaria do Presidente do Ministério, António José d’ Ávila, Marquês d’ Ávila e Bolama, datada desse mesmo dia, proibindo não só essa conferência, mas tosas as seguintes.

Às classes dominantes não convinha esta tentativa de alguns dos mais destacados intelectuais portugueses daquela época, para acabar com o isolamento do País.

A concorrência às conferências era notável: homens de letras, políticos de prestígio e alguns grupos de operários assistiram com muito agrado. As classes dominantes viam nas conferências um perigo para os seus interesses e, como eram dominantes, impuseram a sua vontade, acabando com as Conferências.

As Conferências Democráticas do Casino constituíram um belo exemplo da luta contra o isolamento, da luta pelas liberdades democráticas. Não foi totalmente vitorioso, mas também não foi uma tentativa fracassada. Ainda hoje, ao ler-se a Conferência de Antero de Quental e ao lembrar algumas lutas pelas liberdades democráticas no nosso País, não podemos deixar de sentir uma grande emoção.

*

Bento Caraça foi, não só um grande educador, mas também um grande lutador contra o isolamento científico, cultural e social que as classes dominantes têm imposto ao povo português; foi um grande lutador pelas liberdades democráticas.

A influência negativa do isolamento no atraso científico português foi posta em relevo pelo grande matemático português Gomes Teixeira, primeiro Reitor da Universidade do Porto. De facto, no “Elogio Histórico de Daniel Augusto da Silva”, contido em “Panegíricos e Conferências”, lido na Academia de Ciências de Lisboa, em 2 de Junho de 1918, Gomes Teixeira declarava:

«Não há nada mais prejudicial para a ciência de um povo, que o seu isolamento no meio da ciência dos outros povos. Este isolamento foi quase completo em Portugal na maior parte do século XIX e o motivo principal estava no desconhecimento da nossa língua nos meios científicos estrangeiros.»

O isolamento já existia muito antes do século XIX. Assim, Pedro José da Cunha, que veio a ser o Presidente da 1ª Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática, escreveu no seu trabalho “Bosquejo Histórico das Matemáticas em Portugal

«… enquanto os nossos matemáticos se viam assim isolados dos meios científicos de além – Pirenéus, as descobertas neste ramo das ciências sucediam-se lá fora, qual delas a mais brilhante. Viète criava a álgebra moderna, que recebia logo dos seus continuadores apreciáveis aperfeiçoamentos; Descartes, inventando a geometria analítica, renovava a geometria; Newton e Leibniz, por métodos idênticos na essência, mas diferentes na forma, lançavam os fundamentos da análise infinitesimal, que os irmãos Bernoulli consolidavam, adaptando a concepção de Leibniz; Nepier descobria os logaritmos; Fermat imprimia um avanço considerável à teoria dos números; Pascoal fundava o Cálculo das Probabilidades; abriam-se, numa palavra, em todos os ramos das matemáticas admiráveis horizontes, tão vastos como inesperados. E os geómetras que neste período de decadência, apesar de tudo, não deixámos de contar em Portugal, forçados a alhearem-se deste extraordinários movimento de renovação das ideias, só produziram obras mais ou menos antiquadas, de carácter quase exclusivamente didáctico, que em nada podiam contribuir para os progressos da ciência.»

*

Contribuiu para aumentar e manter o isolamento português com respeito à Europa e o isolamento dos portugueses com respeito a outros portugueses, a permanência da Inquisição em Portugal durante quase três séculos.

Foi em 1531 que D. João III pediu ao papa licença para instalar a Inquisição em Portugal. Em 1536 foi concedida tal licença e, em 1541, realizou-se o primeiro ato de fé. Segundo informa Oliveira Martins, no 2º volume da sua História de Portugal, pp. 191 – 192, até 1732, os autos de fé tinham penitenciado mais de 23000 pessoas e tinham queimado 1454, sendo, no entanto, desconhecido o número daqueles que morreram nos cárceres da Inquisição, vitimados pelas torturas tão habituais e tão refinadas. O número 1454 não inclui os que morreram em consequência das torturas…

O historiador Jaime Cortesão põe em relevo o facto de a Inquisição estar ao serviço das classes dominantes, quando afirma, na sua obra “Alexandre Cortesão e o Tratado de Madrid” (vol. I, p. 98):

«A Inquisição e o fanatismo inquisitorial eram apenas um dos aspectos da perversão do espírito religioso e da subordinação da Igreja ao absolutismo do Estado. Sob os efeitos dissolventes do ouro, o Estado, a nobreza e o alto clero haviam-se dado as mãos para impor a lei despótica dos seus interesses. Quebrada a velha mola da resistência organizada das classes populares – a burguesia e os mesteres – que outrora erguiam com vigor a voz nas cortes, o regime tendeu para uma espécie de despotismo teocrático, de forma exterior asiática que pesava, com aparato esplêndido, sobre os súbditos.

Mas entre o Rei, o alto – clero e a nobreza, existia a consciência da solidariedade dos interesses comuns

No seu livro “História Concisa de Portugal”, José Hermano Saraiva salienta:

«(…)As fogueiras são, de entre as várias formas assumidas pela actividade inquisitorial, o que, pela sua publicidade espectacular, se tornou mais célebre e o que ainda hoje causa o maior horror. Mas houve outros aspectos menos visíveis, mas de consequências não menos graves.

Denunciar um delito contra a fé era considerado um dever religioso (…); a denúncia deixou de ser uma vileza odiosa e sórdida e foi proclamada como piedosa virtude.

(…) Foi a operação policial de maior duração e de maior envergadura que a história regista e, durante ela, toda a gente viveu entre o dever de denunciar e oterror de ser denunciado.»

*

Outro factor que influiu grandemente na manutenção do nosso atraso científico e cultural foi o facto de, a partir de certa altura, o ensino em Portugal ser praticamente dominado pela Companhia de Jesus. Por D. João III, foi entregue aos Jesuítas o ensino primário e secundário. Vinte e cinco anos depois de a Companhia de Jesus ter sido introduzida em Portugal, havia colégios jesuítas espalhados por todo o País. O colégio de Évora foi transformado em Universidade pelos Jesuítas, iniciando desta forma o seu domínio do ensino superior.

Em 1555, D. João III entregou-lhes o mais famoso de todos os colégios humanistas portugueses, o Colégio Real, também chamado Colégio das Artes e Humanidades, fundado por ele mesmo em 1547.

A Inquisição atacou o Colégio, receando que ele se transformasse num centro de livre pensamento. Alguns professores foram detidos em 1550, entre os quais o humanista, poeta, historiador e pedagogo português Diogo de Teive [?], que tinha ensinado em instituições estrangeiras.

Como escreveu Oliveira Marques no 2º volume da sua História de Portugal (p.131),

«Esta tentativa da Companhia de Jesus de dirigir a educação a todos níveis não se processou, evidentemente, sem resistências várias. A Universidade de Coimbra contou-se entre os opositores. As demais ordens religiosas, nomeadamente os Agostinhos e os Dominicanos, muito dados ao ensino e dispondo também de larga influência, reagiram com vigor, mas em vão. (…) As Cortes de 1562 também protestaram contra o número e influência crescente dos Jesuítas, elevando a voz contra a entrega do Colégio das Artes à sua direcção.

Nada, porém, resultou, Jesuítas, Inquisição e Coroa estavam, ao tempo, fortemente unidos contra a heresia, o fermento cultural e todo e qualquer desvio da política do Concílio de Trento. Através do País, grande número de professores sofreu perseguições de toda a ordem, sendo encarcerados, condenados ou forçados a largar as suas cátedras. (…) Universidades e Colégios entraram em fase de quase estagnação (…). O ensino oficial mostrou-se dificilmente permeável a qualquer progresso científico, rejeitando o avanço cultural que se ia verificando lá por fora e oferecendo um exemplo centenário de dogmatismo e inutilidade.»

Na “História da Revolução Portuguesa de 1820”, vol. I de José de Arriaga, pode ler-se:

«A matemática, a astronomia, a física, a química, a geologia, a zoologia, finalmente, todas as ciências naturais foram soterradas na mais profunda ignorância pelos da seita negra, que as condenaram como inimigas da religião, e ciências perigosas. A verdadeira e sólida instrução foi posta de parte, com o pensamento reservado de se enfraquecerem as inteligências, e destas aceitarem mais facilmente o jogo, tornando-se dóceis e submissas a tudo quanto lhes ensinassem.»

José Hermano Saraiva, referindo-se à pedagogia seguida nos colégios dirigidos pelos Jesuítas, afirma na sua História Concisa de Portugal” (p. 197):

«O objectivo era o de enraizar dogmas em que sinceramente se acreditava, não o de provocar críticas, porque o resultado das críticas é sempre o fim dos dogmas. O ensino não foi, pois, um treino para pensar, mas um alicerce para crer. E deu resultado, porque os portugueses do século XVII creram muito mas pensaram pouco

Estas e outras referências ao atraso provocado por jesuítas não nos faz esquecer os serviços extraordinários que alguns prestaram à cultura e à ciência, em especial à Matemática.

*

O isolamento ainda recentemente foi denunciado como responsável pelo nosso atraso científico. No “Manifesto para a Ciência em Portugal”, de José Mariano Gago, publicado em Outubro de 1990, pode ler-se:

«O isolamento científico nacional, verdadeiro atavismo e fronteira do desenvolvimento português, exprime-se em várias frentes: a frente do isolamento do país em relação ao estrangeiro, aos grandes movimentos internacionais das ciências e das técnicas; a frente do isolamento da actividade científica na cultura e na sociedade, o seu enraizamento débil na sociedade, nas escolhas sociais e políticas, no ensino, nos meios de comunicação social, nas actividades económicas; e, por último, a frente do isolamento científico no próprio espaço nacional, onde a mobilidade é baixa, a colaboração interinstitucional pequena e o desequilíbrio regional no investimento para fins científicos se repercute negativamente em baixos índices do mobilização dos recursos humanos disponíveis e em fraquíssima congregação de esforços de diferentes parceiros sociais para o desenvolvimento de actividades científicas e técnicas à escala nacional, ou nas respectivas regiões.»

*

No final da década de 30 e um pouco mais de metade da década de 40, deste nosso século XX, fez-se um esforço muito sério para romper com o isolamento português.

Assim, em 1936, ano em que António Aniceto Monteiro regressou a Lisboa, após o seu doutoramento em Paris, foi criado o Núcleo de Matemática, Física e Química, em Lisboa, por António Aniceto Monteiro, Manuel Valadares, Aurélio Marques da Silva, António da Silveira e Peres de Carvalho.

Em 1937, António Monteiro, Hugo Ribeiro, Silva Paulo, Manuel Zaluar Nunes e Ruy Luís Gomes fundaram a revista Portugaliae Mathemetica, destinada à publicação de trabalhos de trabalhos originais de Matemática

Em 1938, foi fundado, no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia, em resultado de uma proposta apresentada ao Conselho Escolar do Instituto, por Bento de Jesus Caraça, Aureliano de Mira Fernandes e Caetano Beirão da Veiga.

Bento Caraça foi Director do Centro, desde a sua fundação até à sua extinção em 1946.

No ano da fundação Zaluar Nunes iniciou um curso de Cálculo das Probabilidades e Estatística Matemática, que se prolongou pelo ano seguinte.

Em 1939-1940 realizou-se no Centro um conjunto de Colóquios sobre Seguros, com a colaboração dos actuários Rinaldo Feliz Campião, Noronha, Castanheira Nunes e outros.

Em 1941-1942, iniciou-se um curso livre de Introdução à Economia Matemática Clássica, a cargo do Assistente Augusto Sá da Costa.

O Centro colaborou no Congresso de Córdova, de 1944, promovido pela Associação Luso – Espanhola Para o Progresso das Ciências, onde foi unanimemente aprovada a proposta de Bento Caraça relativa à unificação e à coordenação dos estudos demográficos sobre Portugal e Espanha.

No artigo de A. Sá da Costa, intitulado “Um aspecto da acção escolar do Professor Bento Caraça”, publicado na Gazeta de Matemática, nº 37 -39 (1948), p. 5, pode ler-se:

«A primeira tentativa para a introdução sistemática em Portugal dos métodos da Econometria deve-se ao Professor Bento Caraça e a importância desta tentativa não fica diminuída, nem pelos seus próprios e inevitáveis defeitos que representarão, depois de atentamente examinados, preciosa experiência adquirida, nem pela forma como se lhe pôs termo forçado

E termina, dizendo que

«a obra do Professor Bento Caraça, neste domínio, surgirá em toda a sua verdadeira extensão e revelará todos os seus autênticos méritos, dos quais não serão os menores a profunda intenção nacional e o total desinteresse pessoal com que foi realizada.»

No mesmo ano de 1938, por iniciativa de António Monteiro, foi fundado o Seminário Matemático de Lisboa, que, em Novembro de 1939, passou a ser chamado Seminário de Análise Geral.

Em 1939, Bento Caraça, António Monteiro, Hugo Ribeiro, Silva Paulo e Manuel Zaluar Nunes fundaram a revista Gazeta de Matemática, jornal dos concorrentes ao exame de aptidão e dos estudantes de Matemática das Escolas Superiores.

Bento Caraça dirigiu sempre a Secção de Pedagogia da Gazeta, onde publicou vários artigos de Matemática e de História da Matemática.

Em Fevereiro de 1940, por iniciativa de António Monteiro, foi fundado o Centro de Estudos Matemáticos do Lisboa.

Em Fevereiro de 1942, por iniciativa de Ruy Luís Gomes, foi fundado o Centro de Estudos Matemáticos do Porto.

Em 12 de Dezembro de 1940, nasceu a Sociedade Portuguesa de Matemática. Nasceu já com um grande atraso, proveniente naturalmente do isolamento científico, político e social do nosso País

Na verdade, em 1690, fundou-se a Sociedade Matemática de Hamburgo, que começou por ser a Sociedade dos Amigos dos Números e das Artes e, posteriormente a Sociedade para a Divulgação das Ciências Matemáticas.

Outra organização antiga foi a Sociedade Matemática, fundada inicialmente como um círculo de discussões em Spitalfields, em Londres, em 1717, sendo absorvida pela Real Sociedade Astronómica, em 1845.

Organizada em 1864 a Sociedade Matemática de Moscovo como um círculo de entusiastas pela Matemática, foi estabelecida, numa base mais ampla, em 1867.

Em 1865, foi fundada a Sociedade Matemática de Londres, que cresceu e se tornou, dentro de pouco tempo, a Sociedade matemática nacional britânica.

Em 1872, foi fundada a Sociedade Matemática de França.

Em 1888, foi fundada a Sociedade Matemática de Nova Iorque, que, em 1894, se tornou a Sociedade Matemática Americana.

Em 1890, fundou-se a Sociedade Matemática Alemã.

O Círculo Matemático de Palermo foi fundado em 1884 e a União Matemática Italiana em 1922.

*

Em 12 de Dezembro de 1940, pelas 22 horas, reuniu-se, na sala de Cálculo da Faculdade de Ciências de Lisboa, a Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Matemática (S.P.M.), para discussão e aprovação dos Estatutos e a eleição dos corpos gerentes.

Victor Hugo Duarte Lemos, Professor da Faculdade de Ciências de Lisboa, presidiu à sessão, secretariado por José Duarte da Silva Paulo, Professor do Ensino Secundário.

A apresentação e justificação do projecto de Estatutos foi feita por José Francisco Ramos e Costa, professor da Faculdade de ciências de Lisboa, e, após a aprovação de emendas propostas por António Monteiro, os Estatutos foram aprovados.

Procedeu-se em seguida à eleição dos corpos gerentes tendo sido eleitos:

Presidente da Assembleia Geral – Mira Fernandes;

Secretários – Ferreira de Macedo e Ramos e Costa;

Presidente da Direcção – Pedro José da Cunha;

Vice-Presidente – Victor Hugo;

Secretário-Geral – António Monteiro;

Tesoureiro – Zaluar Nunes;

1º Secretário – Maria Pilar Ribeiro;

2º Secretário – Augusto Sá da Costa;

Delegados à Associação Portuguesa para o Avanço da Ciência – Bento Caraça e Francisco Leite Pinto

Em 20 de Março de 1943 processou-se a 2ª eleição dos corpos gerentes da S.P.M. e Bento Caraça foi eleito Secretário-Geral da Direcção e Delegado à Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências.

Mira Fernandes foi eleito Presidente da Direcção, mas comunicou que lhe era impossível aceitar o cargo, de modo que se tornou necessário proceder a nova eleição e, então, Bento Caraça foi eleito para a Presidência da Direcção.

Em todas as outras eleições que se processaram durante a sua vida, Bento Caraça foi sempre eleito Delegado à Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências e houve sempre uma outra tarefa que ele desempenhou – a de presidir à Comissão Pedagógica da S.P.M.

*

Bento Caraça tinha um conceito de cultura que muito o ajudava no desempenho das suas funções de professor, nas suas funções de Director do Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia, nas funções que desempenhou na S.P.M. e na sua convivência com colegas e não colegas, com estudantes e não estudantes. Numa palestra que fez na Universidade Popular de Setúbal, em 22 de Março de 1931, Bento Caraça declarou:

«Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade – o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais. Assim, cultura e liberdade identificam-se – sem cultura não pode haver liberdade, sem liberdade não pode haver cultura. Deve ainda a cultura tender ao desenvolvimento do espírito de solidariedade. Não apenas solidariedade de cada um com os da sua família, da sua aldeia ou da sua pátria – solidariedade do homem com todos os outros homens de todo o mundo.

Este internacionalismo não significa de modo nenhum a destruição da pátria, antes pelo contrário, implica a sua consolidação e o seu alargamento a todas a nacionalidades – a formação da pátria humana. O coração do homem é grande e nele cabe bem o amor da sua nacionalidade ao lado do amor de toda humanidade.»

Uma declaração semelhante, acerca do conceito de cultura foi feita uns anos mais tarde, em 11 de Junho de 1931, pelo grande físico francês Paul Langevin, na conferência feita no Museu Pedagógico, sob os auspícios da Sociedade Francesa de Pedagogia. A conferência intitulava-se “Contribuição do Ensino das Ciências Físicas para a Cultura Geral”. Langevin declarou o seguinte:

«(…) a cultura geral é o que permite ao indivíduo sentir plenamente a solidariedade com os outros homens, no espaço e no tempo, tanto da sua geração como das gerações que o precederam e das virão depois. Ser culto é, portanto, ter recebido e desenvolver constantemente uma iniciação nas diferentes formas de actividade humana, independentemente das que correspondem à profissão, de maneira a poder entrar largamente em contacto, em comunhão com os outros homens.»

Em várias outras conferências, Bento Caraça, em Portugal e Paul Langevin em França trataram o tema “Cultura”.

Por exemplo, Bento Caraça, na conferência intitulada “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso Tempo”, realizada na União Cultural “Mocidade Livre”, em 25 de Maio de 1933, afirmou:

«A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade.

E para atingir esse cume elevado, acessível a todo o homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se. A pureza que se respeita no alto compensa bem a fadiga da ladeira.

Condição indispensável para que o homem possa trilhar a senda da cultura – que ele seja economicamente independente. Consequência – o problema económico é, de todos, aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar. Tudo aquilo que for empreendido sem a resolução prévia, radical e séria, desse problema, não passará, ou duma tentativa ingénua, com vaga tinta filantrópica, destinada a perder-se na impotência, ou de uma mão cheia de pó, atirada aos olhos dos incautos.»

E Paul Langevin, na conferência intitulada “O Problema da Cultura Geral”, pronunciada no Congresso de Nice em 1932 e publicada por “Pour l’ Ere Nouvelle” em Outubro de 1932, diz a certa altura:

«(…) a verdadeira cultura geral é a que abre o homem a tudo o que não se limite a ele próprio, a tudo o que ultrapasse o círculo estreito da sua especialidade.

Aquilo a que aspiramos sob o nome de cultura viva e humana, é a consciência dos vínculos recíprocos entre as diversas actividades passadas e presentes, para preparar o futuro, do parentesco dos espíritos e da fraternidade das obras, é aquilo que dá sentido tão vasto como a própria sociedade ao menor dos esforços, um significado humano à actividade mais humilde. Compreender os outros, saber sair de si e do seu egoísmo para se colocar no ponto de vista dos outros, apreender as suas necessidades, colaborar na sua tarefa como numa obra comum não será um dos aspectos essenciais da vida social e moral? Essa virtude da humanidade não deveria ser o produto natural e principal das “humanidades”, se querem merecer tal nome?

*

É conhecida uma declaração de um dirigente nazi no sentido de que quando alguém lhe falava em cultura, ele puxava logo pela pistola.

O comportamento de dirigentes fascistas com respeito à cultura, quer se trate de alemães, italianos ou portugueses, é essencialmente o mesmo: puxando ou não puxando pela pistola, é um comportamento hostil.

Em todos os países onde o fascismo alcançou o poder, instalou-se a violência e desencadeou-se uma onda de perseguições contra professores, sobretudo contra aqueles que entendem que é seu dever ajudar os alunos a adquirir espírito crítico e autonomia mental. Ora os governantes fascistas não estão interessados em que os jovens adquiram espírito crítico e autonomia mental.

Como Evry Schatzman escreveu em 1971 (ver “La Sciènce Menaceé”):

«um ensino da ciência que não ensina a pensar, não é um ensino da ciência, é um ensino da submissão.»;

e foi um ensino da submissão o tipo de ensino que o fascismo consentiu.

No livro de Victor Farias, intitulado “Heidegger e o Nazismo”, p.120, alude-se a uma conversa, havida em Junho de 1933, entre Karl Jaspers (que estudou direito em Heidelberg e Gottingen) e Martin Heidegger (filósofo alemão, professor universitário e reitor da Universidade de Freiberg). A certa altura, Jarpers perguntou:

«Como pode V. pensar que um homem tão inculto como Hitler pode governar a Alemanha?

E o fervoroso nazi Heidegger respondeu:

«A cultura não tem importância!»

Esta resposta de um reitor de uma universidade dá bem uma ideia do respeito que a ciência e a cultura mereciam aos fervorosos nazis.

O que os nazis pretendiam fazer no campo da educação da juventude está bem patente na declaração que Hitler fez ao antigo Presidente do Senado de Dantzig, Hermann Rauschnigg:

«Eu quero uma juventude brutal, imperiosa, impávida e cruel.» (“Les Fascismes”, de Henri Michel, nº 1683, da Colecção “Que sais-je?”, p. 66)

O reitor, para quem “a cultura não tem importâncias”, proclamou num discurso aos estudantes:

«Não sejam os princípios e as “ideias” as regras da vossa existênciaO próprio Fuhrer, e só ele, é a realidade alemã de hoje e do futuro, é a sua lei.»

Em Outubro de 1939, as Universidades alemãs, com excepção das de Berlim, Munique, Iena e Viena, estavam encerradas. Foram 22 as universidades alemãs encerradas pelos nazis.

O desrespeito de Hitler pela palavra dada, a falta de consideração de Hitler pelos trabalhadores estão bem patentes no que se passou nos dias 1 e 2 de Maio do ano em que Hitler alcançou o poder. No dia 1 de Maio de 1933, foi organizada em Berlim uma primeira grande Festa do Trabalho. Hitler apresentou-se nessa Festa como defensor dos operários. Exactamente no dia seguinte, são suprimidos todos os sindicatos e os seus bens confiscados.

Estes e muitos outros exemplos de Hitler foram admirados e seguidos ou imitados, com mais ou menos rigor, pelo fascismo itsaliano e pelo fascismo português.

No livro intitulado “Mussolini et le fascisme”, de Paul Guichonnet [?], nº 1225 da colecção “Que sais-je?”, pode ler-se (p. 96)

«A imitação mais deplorável do nazismo foi a partir de Janeiro de 1938, a instauração do racismo e do anti-semitismo. Com o apoio de universitários complacentes, um “manifesto de defesa da raça” foi difundido, em Julho, exaltando a pureza do tipo físico italiano, imutável desde há mil anos e que devia ser preservado da sujeira. Foi seguido da criação do “Conselho Superior para a Demografia e a Raça”. Em Agosto, o regime começou a perseguir os judeus e a minoria israelita, enraizada desde há séculos (…). Apontar os judeus à reprovação pública e aos massacres perpetrados por ocasião da ocupação alemã e colocou uma marca de infâmia num regime que se comprazia em se apresentar como arauto da cultura e da civilização.

Muitos cientistas italianos foram expulsos das universidades, na sequência da legislação racista feita à semelhança da legislação e práticas alemãs.

Em Portugal, a propaganda do analfabetismo e as acções contra os professores começaram logo a seguir ao 28 de Maio e agravaram-se depois, quando Salazar assumiu a chefia do governo.

Logo em 1926 foi instituída a censura à imprensa e logo em 1926-1927, foram presas e deportadas para o Ultramar, várias centenas de pessoas.

Manuel Múrias, num artigo publicado no jornal “A Voz”, escreveu:

«E cedo ou tarde, os programas de instrução primária hão-de ficar reduzidos às matérias que lhes são essenciais: ler, escrever e contar, correctamente. Isto é essencial; o resto é acessório.» (citado em “Educação Nacional”, de 16 de Junho de 1929)

João Ameal, autor de uma “História de Portugal”, proclamou:

«Portugal não precisa de escolas (…) Ensinar o povo a ler é corromper oatavismo da raça.»

Alfredo Pimenta escreve o seguinte no jornal “A Voz”:

«Ensinar o povo português a ler e a escrever para tomar conhecimento das doutrinas corrosivas de panfletários sem escrúpulos, ou de facécias mal cheirosas que no seu beco escuro vomita todos os dias qualquer garoto da vida airada ou das mentiras criminosas dos foliculários políticos – é inadmissível. Logo, concluo eu: para a péssima educação que possui e para a natureza da educação que lhe vão dar – o povo português já sabe demais (…).»

Virgínia de Castro e Almeida, escritora, que se dedica também a literatura infantil, conforme pode ler-se na “História do Ensino em Portugal”, de Rómulo de Carvalho,

«(…) considerando que existiam então [em 1927] 75 por cento de analfabetos, dizia no jornal “O Século”, que “A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa reside nesses 75 por cento de analfabetos”. Em alusão aos rurais que aprenderam as primeiras letras, pergunta a escritora e responde: Que vantagens foram buscar à escola? Nenhumas. Nada ganharam. Perderam tudo. Felizes os que esquecem as letras e voltam à enxada.»

As opiniões destes aderentes do Estado Novo e de outros que aqui não citamos mostram até onde podiam ir aqueles para quem “cultura” não se identificava com “liberdade”.

O chefe do Estado Novo dizia que “ler, escrever e contar é suficiente para a maioria dos portugueses”.

Em 1937, são extintas as escolas oficiais infantis; desde modo o ensino infantil passou a ser privilégio da classe endinheirada.

Em 1936, são escerradas as Escolas Normais, que só serão reabertas em 1942. Numa altura em que havias mais de 50% de analfabetos, o encerramento das escolas de formação de professores primários, juntamente com a criação dos chamados postos escolares, onde a escolaridade obrigatória é reduzida de 4 para 3 anos, significa protecção oficial ao analfabetismo.

A expulsão de professores dos vários graus de ensino, a deficiência de meios pedagógicos em muitas das escolas existentes, as restrições à independência mental dos professores, a deficiência de meios materiais que atinge tantos profissionais do ensino, as restrições impostas à liberdade de associação dos professores e à liberdade de associação dos estudantes, tudo isto concorreu para desprestigiar o trabalho dos professores e o trabalho dos estudantes.

Muitos professores afastados compulsivamente das suas funções de ensino e investigação tiveram de mudar de profissão; outros viram-se forçados a aceitar convites de escolas estrangeiras para não deixar de ensinar e investigar.

Em 7 de Outubro de 1946, o Professor Bento de Jesus Caraça e também o Professor Mário de Azevedo Gomes foram demitidos pelo fascismo salazarista, a pretexto de um documento que ambos assinaram na qualidade de membros da Comissão Central do “Movimento de Unidade Democrática”, onde se entendia que o nosso país, ainda sob um regime fascista, não tinha condições para ingressar na ONU, organização promovida precisamente pelas nações vitoriosas na 2ª Guerra Mundial, em que o fascismo foi derrotado.

Em 25 de Junho de 1948, faleceu Bento de Jesus Caraça. Para além da colaboração que deixou nas revistas Técnica, Gazeta de Matemática, Seara Nova e Vértice e nos jornais O Globo, O Diabo e A Liberdade, das conferências As Universidades Populares e a Cultura, A vida e obra de Evaristo Galois, A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do nosso Tempo, Gaileu Galilei, Valor Científico e Valor Moral da sua Obra, Escola Única, A Arte e a Cultura Popular, Rabinbanath Tagore, Algumas Reflexões sobre a Arte, Aspectos do Problema Cultural Português, para além dos trabalhos matemáticos que deixou, Interpolação e Integração Numéricas, Lições de álgebra e Análise, Cálculo Vectorial, Conceitos Fundamentais da Matemática, para além de vários Outros Escritos, tais como A Luta Contra a Guerra, O Único Remédio, Crepúsculo da Europa, Crítica Científica, A Evolução da Física, Abel e Galois, Humanismo e Humanismo e Humanidades, etc., etc., para além de tudo isto – que é muito! – bento de Jesus Caraça, que tinha apenas 47 anos quando morreu, tinha ainda muito para dar à nossa Pátria, como militante da Cultura, como militante da Liberdade!

Permitam-me que termine aqui esta palestra, transcrevendo a parte final de um artigo do Professor Ruy Luís Gomes, publicado na Gazeta de Matemática, nº 37-38 (1948), intitulado “Bento Caraça, Grande Educador”:

«Alinhando com aqueles que pretendem transformar as nossas Universidades em Centros de Investigação e verdadeiras escolas de trabalho, escolheu como primeiro valor, no domínio da sua actividade de professor, a subordinação dos seus interesses imediatos a um interesse superior – o da preparação profissional da juventude.

E sacrificando tudo, desde a cátedra, de que foi afastado, até às exigências de uma saúde precária aos grandes valores morais – inteireza de carácter, sentimento de solidariedade e coerência de princípios – deu-nos a todos a melhor lição da sua vida.

O seu exemplo pertence ao património moral da nossa Pátria. O povo português nunca o esquecerá!»

(Palestra feita em 8/3/96, na Escola Secundária Oliveira Martins)

José Morgado,

Centro de Matemática da

Faculdade de Ciências do Porto

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Apresentação do livro intitulado "Nómadas e Sedentários na Ásia Central" de Miguel Urbano Rodrigues

Na Introdução ao seu livro Nómadas e Sendentários na Ásia Central, Miguel Urbano Rodrigues começa por nos dizer que possivelmente a ideia deste seu trabalho terá nascido em 1986, nas ruínas de uma antiquíssima cidade do Norte do Afeganistão.
A sua curiosidade natural e o seu espírito de observação levaram-no a formular várias perguntas às pessoas com quem foi tendo contacto, mas algumas dessas indagações não obtiveram resposta, porque as pessoas que interrogou não tinham tido interesse em se informar. Por exemplo, não conseguiu saber o nome da tal cidade arruinada, nem a época em que tinha sido construída.
Em face desta situação, Miguel Urbano, fez as seguintes considerações:

«Essas indagações, repetidas e ampliadas, estiveram na origem do interesse crescente que o cenário geográfico e histórico do Afeganistão me inspirou, quando a guerra ali me atraiu pela primeira vez em 1980. Para tentar compreender um pouco o presente, procurei subir pelo passado até onde me era possível. (...)
O interesse diversificou-se; o cenário ganhou outra dimensão. A Ásia Central passou a ser quase obsessão.
(...)
O fascínio por culturas justapostas, algumas antagónicas, foi germinando até se transformar em projecto, o desejo vago de passar, a reflexão escrita, a minha meditação descontínua sobre o movimento dos povos e o encontro e choque de civilizações, numa área de contornos fluidos, que tem por núcleo a Ásia Central, mas é mais ampla que ela.»

E mais adiante, miguel Urbano declara:

«Se este livro for bem recebido pelos jovens que, nas Universidades portuguesas se entregam com amor aos estudos históricos, se ele conseguir despertar-lhes o interesse pelo papel decisivo que a Ásia Central desempenhou durante dois milénios no processo de interacção de civilizações e, portanto, da evolução da Humanidade, sentirei que valeu a pena o esforço que me exigiu a sua elaboração.»

Estou inteiramente convencido de que esse esforço, que não foi pequeno, não será considerado um esforço perdido. Muito pelo contrário; trata-se de um esforço que despertará a curiosidade dos seus leitores atentos, trata-se de um esforço que motivará o aparecimento de novos trabalhos sobre o nascimento e evolução de civilizações de povos asiáticos ou até não asiáticos.
De facto, o cuidado que Miguel Urbano teve em não dissociar o estudo da Geografia do estudo da História dos povos asiáticos, o cuidado em incluir na Introdução o significado actual de cerca de 100 palavras ou expressões usadas em uma ou mais regiões da Ásia Central, mas não usadas ou muitíssimo pouco usadas em Portugal e noutros países de língua portuguesa, o cuidado que teve, ao longo das cerca de 40 páginas da Introdução, em formular perguntas ao leitor (em, de certo mod, conversar com o leitor), pondo-o a par de algumas dificuldades e, inclusivamente, de algumas questões a que o próprio Miguel Urbano declarou ainda não saber responder (mas não declarou que desistia de vir a saber), enfim, a grande seriedade de Miguel Urbano, tudo isto poderá motivar a elaboração de outros trabalhos sobre temas análogos ao tema do presente livro - a aventursa do homem na Ásia Central.
E uma tal motivação é tanto mais necessária quanto é certo qu, conforme pode ler-se na História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes (6ª ed., p. 328),

«está por estudar, sob o ponto de vista literário, como sob o histórico, a colecção de 61 volumes de documentos intitulada "Jesuítas na Ásia", existente [então] na Bibliuoteca da Ajuda, em cópias setecentistas de que recentemente se descobriram os originais em Madrid (vide Brotéria, vol. LXXXII, 1961, Janeiro)»

Quanto ao facto de Miguel Urbano fazer perguntas, a algumas das quais ainda não saber responder (apenas podendo talvez formular algumas hipóteses),convém lembrar uma passagem do livro de Lucien Fèbvre, intitulado Combats pour L'Histoire (Combates pela História, traduzido por Leonor Martinho Simões e Gisela Moniz, 3ª ed., Lisboa, 1989, Editorial Presença, Lda). Este livro contém os textos de vários artigos e conferências do seu Autor).
A conferência a que nos vamos referir intitula-se Viver a História e foi dirigida aos alunos da l' École Normale Supérieure, no princípio do ano lectivo de 1941.
Entre outras coisas, diz o seguinte (pp. 32 - 33):

«Se o historiador não põe a si próprio problemas ou, tendo-os posto, não formula hipóteses para os resolver - no que respeita a ofício, a técnica, a esforço científico, sou levado a dizer que está um tanto atrasado em relação ao último dos nossos camponeses, porque esses sabem que não convém lançar seus animais, em desordem, no primeiro campo que apareça, para eles pastarem ao acaso: mantêm-nos no cercado, prendem-nos à estaca, fazem-nos parsar mais aqui que ali. E sabem porquê?»

Há um certo exagero nesta afirmação de Lucien Febvre ...

*
A propósito da ligação entre entre História e Geografia, pode ler-se, na Introdução do presente livro de Miguel Urbano, o seguinte (pp 11 - 12):

«Historiadores portugueses do século XVI deram uma contribuição de grande valor para um melhor conhecimento, na Europa, de aspectos da Ásiareal, pondo fim a mitos que a desfiguravam. Benedicto de Goes, um jesuíta português, percorreu a Rota da Seda, e foi talvez o primeiro europeu a desfazer em 1603 confusões geográficas e históricas que nasciam da multiplicidade de nomes utilizadas para designar a China.
Nos últimos séculos a historiografia portuguesa fechou-se, porém, sobre a Índia, no tocante à Ásia, e mais concretamente sobre uma parcela da Índia. Da importância e significado do conjunto da obra produzida pelos estudiosos, da presença portuguesa no subcontinente, faz prova a opinião que, sobre esta,expressam alguns dos mais eminentes historiadores indianos contemporâneo»

Em vez de Benedicto de Goes, não será Bento de Goes?
Faço esta pergunta, porque é como Bento de Goes, e não como Benedicto de Goes, que um jesuíta português vem mencionado na Grande Eciclopédia Delta Larousse, na Enciclopédia Luso - Brasileira de Cultura, na Nova Enciclopédia Larousse e no vol. II da História de Portugal de A. H. de Oliveira Marques.
Não sei se terá acontecido que, atendendo à proximidade de significados das palavras Bento e Benectido, ambos os nomes, Bento de Goes e Benectido de Goes, tenham sido usados por uma mesma pessoa!...
A propósito de um melhor conhecimento, na Europa, de aspectos da Ásia real , talvez fosse interessante fazer uma alusão, naturalmente breve, ao célebre livro Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. E digo alusão, naturalmente breve, porque Fernão Mendes Pinto não é considerado um historiador.
No entanto,
na Nova Enciclopédia Larousse, diz-se que

«O testemunho documental da Peregrinação, para além do seu valor artístico, é valiosíssima, pelos relatos não só dos costumes chineses, japoneses e de outros povos asiáticos, mas também pelo retrato que faz, nem sempre abonatório, da presença portuguesa no Oriente do século XVI.»

Na Grande Enciclopédia Delta Larousse, pode ler-se que

«Fernão Mendes Pinto incorre por vezes em exagerações fantasiosas que, por serem tais e tantas, deram origem ao conhecido jogo de palavras: "Fernão! Mentes? Minto." Todavia, como observam vários historiadores modernos, em todas as fantasias que nos relata há muito de verdadeiro, e sua obra constitui um dos mais ricos repositórios de informações sobre a época e os costumes antigos das regiões que percorreu.
(...)
A Peregrinação foi traduzida, logo depois da sua publicação, para a maioria das línguas cultas do mundo, fazendo de Fernão Mentes Pinto um dos escritores portugueses mais divulgados internacionalmente.»

Na pág. 26 do vol. II da História de Portugal , de Oliveira Marques, diz-se que:

«O maior de todos os viajantes portugueses da primeira metade do século XVI foi, sem dúvida, Fernão Mendes Pinto, aventureiro em busca de fortuna, que visitou o sudoeste asiático, a China, o Japão, em longos percursos que lhe ocuparam dezassete anos de vida (1537 - 1554). A sua peregrinação, só publicada em 1614, combina uma boa dose de imaginação e de fantasia com grande parte de informes verídicos e palpitantes de vida. Com justiça tem sido apodado de Marco Polo portugues.»

Na História de Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes (pp 319 - 320; da 6ª edição) pode ler-se:

«O mais interessante livro de viagem do século XVI português e um dos mais interessantes da literatura mundial é a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (~1510 - 1583).
(...)
Podem distinguir-se na Peregrinação capítulos que se inspiram evidentemente na experiência directa e capítulos que são reconstrução a partir de fontes literárias e outras igualmente indirectas. Está no primeiro caso a descrição do Japão, ou antes, dos meios aristocráticos japoneses, de que F.M.P. apreendeu com finura feições típicas, como o espírito guerreiro, a cortesia fidalga, a fúria da honra, e outros - antecipando-se aos observadores exotistas do século XIX. Está no segundo caso a descrição da China, prodigiosa civilização que o espanta e cuja superioridade ele procura explicar pela história, leis, normas morais e preceitos religiosos. Esta descrição da China é na realidade o esboço de uma utopia, e antecipa-se à crítica social mediante contrastes de civilizações, tão praticada no século XVIII.
O exotismo de F. M. Pinto resulta do seu interesse incessante pelas formas das civilizações que percorreu. Mas, ao contrário do que sucede com a maior parte da literatura exótica do séc. XIX, não se trata de um simples desfrutador de curiosidade. Não tem o preconceito de superioridade da sua civilização ou de sua raça, e por isso assume facilmente perante os orientais uma atitude admirativa e humilde que o leva, por exemplo, a desejar que as leis de China sejam imitadas em Portugal. A isenção de preconceitos raciais, nacionais ou religiosos, juntamente com a atitude crítica que nunca abandona, revelam-se ao pôr na boca das suas personagens orientais as opiniões e comentários mais depreciativos acerca dos Europeus. Para eles, estes homens brancos e barbados não passam de vagabundos miseráveis ou de salteadores bárbaros, sem educação, sem humanidade sem verdadeira religião.»

*
A propósito da historiografia nacional, recordemos que, para Oliveira Martins, ela apresenta três épocas sucessivas de considerável extensão, mas todas efémeras, pois, em nenhuma delas, se conseguiu fixar uma tradição, mais precisamente, fundar uma escola. (Ver "História de Portugal", de Oliveira Martins, 11ª ed. pp. 327 - 328, 2º vol.)
A primeira é a Academia de História (1720 - 1731), a que presidiu o membro da Ordem dos Clérigos Regulares, D. António Caetano de Sousa, com a sua História Genealógica.
A segunda é a da Academia das Ciências (1780 - 1796), a que presidiu o historiador João Pedro Ribeiro, cónego das sés de Porto, Viseu e Faro, lente da Universidade de Coimbra e considerado fundador da Ciência Diplomática; foi autor de várias obras, nomeadamente a Dissertação Cronológica, as Reflexões, etc.
Finalmente, a terceira é a de Alexandre Herculano, com a sua História de Portugal.
Depois da História de Portugal de Herculano, a historiografia nacional extingue-se; isto não significa que não tenham aparecido trabalhos valiosos de História - apareceram alguns, mas o que não apareceu foi um conjunto de historiadores suficientemente grande e resoluto, que assumisse a responsabilidade de continuar a enfrentar as dificuldades dos trabalhos históricos.
Joaquim Barradas de Carvalho, no seu livro intitulado Da História - Crónica à História - Ciência (Colecção Horizonte nº 16, 1972, p. 90) informa que Alexandre Herculano caracterizou a sua História de Portugal como «a primeira tentativa de uma história crítica de Portugal» e informa ainda que António Sérgio aceitou esta caracterização de Herculano. No livro de António Sérgio, intitulado Breve Interpretação da História de Portugal (p.141) pode ler-se:

«A sua História (1846 - 1853) e o Verdadeiro Método de Estudar, de Verney (1747), são os dois livros capitais da cultura portuguesa, depois da época do Renascimento.»

De acordo com a opinião de Barradas de Carvalho, foi com Herculano que nasceu em Portugal a historiografia científica, pois, até então, a historiografia existente em Portugal não diferia profundamente daquela que faziam os cronistas medievais ou renascentistas, sejam eles Gomes Eanes de Azurara ou João de Barros, Rui de Pina ou Damião de Góis.
E Barradas de Carvalho teve o cuidado de explicar o motivo pelo qual não incluiu Fernão Lopes no seu conjunto dos cronistas mencionados. É que, conforme assinala barradas de Carvalho,

«Em Fernão Lopes existe o cronista, mas já existe também o historiador. Na Crónica de D. João I, Fernão Lopes é cronista quando se ocupa de Nuno Álvares Pereira, o seu herói individual, de quem faz incondicionalmente o panegírico, tal como Zurara o faz para o Infante D. Henrique; é já historiador, como nenhum outro cronista, quando personifica a cidade de Lisboa, quando se ocupa do povo de Lisboa na Revolução de 1383, quando se ocupa do povo português, o seu herói colectivo; fica entre o cronista e o historiador, fica na transição da crónica à história, quando se ocupa de D. João I, mestre de Avis e rei de Portugal, por ele sempre criticado, o seu anti - herói, se assim lhe podemos chamar.
(...) O caso extraordinário, e mesmo inesperado, que nos parece ser o de Fernão Lopes, só poderá ter a sua explicação, se atentarmos no facto de que ele foi o cronista da Revolução de 1383, a primeira revolução burguesa da história da humanidade, `escala de uma nação.»

No capítulo Sobre história e ciências humanas, título de uma palestra realizada por Barradas de Carvalho, em 20 de Março e em 3 de Abril de 1968, no Anfiteatro Fernand Brandel, do Departamento de História para alunos do 1º ano do Curso de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, texto incluído no livro Da História -Crónica à História - Ciência, afirma-se, a certa altura o seguinte (p.66):

«A história, ciência das ciências do homem, a história, ciência fundamental entre as ciências sociais, ciência fundamental entre as ciências humanas, surge-nos, na verdade, muito logicamente - tal como a física teórica - como menos operacional de que qualquer das restantes ciências sociais, menos operacional do que qualquer das restantes ciências humanas. Menos operacional do que a geografia, menos operacional do que a economia, menos operacional do que a sociologia, menos operacional do que a política, menos operacional do que a psicologia.
Mas, entretanto, a prática colocou, relativamente, em dificuldade a teoria, a prática colocou, relativamente, em dificuldade a lógica desta nossa exposição. Para citarmos a amostra mais representativa, poderemos dizer que a historiografia francesa contemporânea, melhor, o sector verdadeiramente significativo, de vanguarda, da historiografia francesa contemporânea, modificou, transformou, revolucionou, relativamente, na prática, aquilo que nos parecia o quadro lógico.»

E Barradas de Carvalho continua, afirmando:

«O movimento esboçado por Henri Berr, com La Synthèse en Histoire e verdadeiramente lançado por Lucien Fèbvre e Marc Bloch - agora sob a direcção de Fernand Braudel, para s´citar os nomes mais expressivos - com a revista Annales (Économies - Societés - Civilisations) e com a VI Secção (Ciências Económicas e Sociais) da Escola Prática de Altos Estudos da Universidade de Paris, veio modificar substancialmente o esquema lógico a que nos referimos. E veio modificá-lo na medida em que desapareceram quase por completo as barreiras entre as diversas ciências humanas, entre as diversas ciências humanas, entre as diversas ciências sociais. Na medida em que se atenuou de maneira quase total a distinção entre a história e a geografia, a história e a economia, a história e a sociologia, a história e a política, a história e a psicologia, poderemos dizer que a história, as ciências históricas deixaram de ser tão menos operacionais do que as restantes ciências sociais, as restantes ciências humanas. Deixaram de ser tão menos operacionais, mas não deixaram de ser - está na sua natureza mesma - a ciência fundamental entre o complexo e variado naipe das ciências sociais, das ciências humanas.»

Heri Berr (1863 - 1954) - Foi Professor e teórico de História, que, em vários trabalhos, combateu o eruditismo como forma menor de investigação. Considerava a Síntese Histórica como a principal operação a realizar, devendo esta orientar-se pelo princípio da interacção das causas. Foi Director do Centro Internacional de Síntese e da Revue de Synthèse Historique (1900 - 1930), depois Revue de Synthèse (1930)
(Nova Enciclopédia Larousse, vol 4)

Lucien Febvre (1878 - 1956) - Historiador francês e professor da Universidade de Estrasburgo e do Colégio de França. Defensor das mais modernas concepções de historiografia, fundou com Marc Bloch os Annales d' Histoire Économique et Sociale. Foi continuador do pensamento de Henry Berr na Revue de Synthèse. Desde 1933, concebeu e orientou a Encyclopédie Française.
(Nova Enciclopédia Larousse, vol. 10)

Marc Bloch (1886 - 1944) - Professor de História Económica na Sorbonne; entrou para a Resistência Antifascista em 1942. Foi preso pela Gestapo e fuzilado, sem julgamento pelos nazis em 16 de Junho de 1944 (Ver Combates pela História, de Lucien Febvre, pag 241)

Fernand Braudel (1902 - 1985) - Historiador francês, foi Professor no Colégio de França, fundou a revista Annales juntamente com L. Febvre e Marc Bloch. Abriu a história ao estudo dos fenómenos de longa duração.
(Nova Enciclopédia Larousse, vol. 4)

Fernand Braudel é considerado um dos entusiastas da historiografia contemporânea. No seu livro Escritos sobre a História (tradução de Francisco Paiva Boléo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1997), escreveu (p.81):

«Esta busca de uma história não factual [i.e., não limitada aos factos singulares] impôs-se de uma maneira imperiosa no contacto com as outras ciências do homem, contacto inevitável (as polémicas são prova disso) e que, em França, se organizou a partir de 1900, graças à maravilhosa Revue de Synthèse historique de Henri Berr, cuja leitura, retrospectivamente, é tão emocionante; a seguir, a partir de 1939, graças à vigorosa e muito eficaz campanha dos Annales de Lucien Febvre e Marc Bloch. A história dedicou-se desde então, a observar tanto os factos que se repetem como os singulares, tanto as realidades conscientes como as inconscientes. O historiador quis, desde então, ser e foi economista, sociólogo, antropólogo, demógrafo, psicólogo, linguista ... Estas novas ligações de espírito foram, simultaneamente, ligações de amizade e de coração. Os amigos de Lucien Febvre e de Marc Bloch, fundadores, animadores também eles dos Annales constituiram um colóquio permanente das ciências do homem, de Albert Demaugeon e de Jules Sion, os geógrafos, a Maurice Halbwachs, o sociólogo, de Charles Bloudel e de Henri Wallon, os psicólogos, a François Simiand, o filósofo - sociólogo - economista. Com eles, a história dedicou-se, bem ou mal, mas de maneira decidida, a todas as ciências do humano; ela quis-se, com os seus chefes de fila, uma impossível ciência global do homem. (...) Desde então, a história continuou nesta mesma linha a alimentar-se das outras ciências do homem.»

*

Já antes dissemos que este livro de Miguel Urbano, pelo modo como tratou o tema escolhido, pode motivar a elaboração de outros livros sobre temas análogos ao tema deste.
Este livro mostra que o seu Autor adquiriu uma grande experiência na divulgação da História política. De facto, Miguel Urbano não começou com este livro a sua vida de escritor em luta pela Democracia e pela Paz.
A sua luta já vem de longe. Só em em dois dos seus livros há anos publicados,
Da Resistência à Revolução, em 1975, e
Revolução e Vida, em 1978

podemos ler 75 artigos (40 no 1º livro e 35 no 2º), artigos que contêm textos publicados em jornais, essencialmente dedicados à luta contra o fascismo, contra o colonialismo, contra o imperialismo, especialmente o imperialismo americano, o mais perigoso de todos.
Com a leitura desses artigos, podemos aprender muito: aprender a lutar pela democracia,com firmeza e sem sectarismo.
A sua actividade política constitui um belo exemplo de amor à liberdade, à democracia, à solidariedade humana, ao socialismo; ao socialismo autêntico - não (evidentemente!) àquele socialismo que alguém muito apregoa, mas que o encerrou alegremente numa gaveta e nunca mais pensou em retirá-lo de lá ...
Peço licença, meus amigos, para terminar estas palestra, recordando uma frase que Miguel Urbano escreveu no fim do último artigo publicado no livro intitulado Revolução e Vida. A frase é a seguinte:

«Só a esquerda unida poderá desbravar a estrada que conduz ao socialismo.»

José Morgado