A propósito dos conceitos Fundamentais da Matemática de Bento de Jesus Caraça
1 – Identificação dos conceitos de Cultura e Liberdade
Bento de Jesus Caraça foi um Professor invulgar, grande educador, trabalhador incansável pela cultura popular, lutador pela conquista das Liberdades Democráticas, pela Paz, pela Independência Nacional e pela Cooperação entre os Povos.
Foi fundador da Biblioteca Cosmos e seu director desde a sua fundação, em 1941, até à sua morte, em 1948. Pela Biblioteca Cosmos foram publicados perto de centena e meia de volumes, incluindo dois dos três volumes da obra de Bento Caraça intitulada Conceitos Fundamentais da Matemática, o primeiro volume no próprio ano da fundação e o segundo no ano seguinte. O terceiro volume, juntamente com novas edições dos dois primeiros, só pôde ser publicado depois do falecimento do Autor.
A orientação geral que Bento Caraça adoptou, na direcção da Biblioteca Cosmos e noutros trabalhos seus de divulgação, foi naturalmente a resultante das suas próprias ideias sobre o que é a cultura e sobre quem deve beneficiar da cultura.
A este respeito, vejamos o que Bento Caraça nos diz:
«Dar ao maior número o máximo possível de cultura geral, tornar acessível a todos aquilo que as condições materiais de vida e as necessidades profissionais da especialização tornam sempre difícil e, por vezes, mesmo impossível adquirir – uma visão geral do mundo, mundo físico e mundo social, da sua construção, da sua vida e dos seus problemas.»
Foi com estas palavras, escritas no prefácio do 1º volume da Biblioteca Cosmos – O Homem e o Livro, da autoria de M. Iline – que Bento Caraça respondeu à pergunta que ele próprio formulou: «A que vem a Biblioteca Cosmos?»
«Dar ao maior número o máximo possível de cultura geral» foi sempre uma preocupação de Bento Caraça, preocupação bem transparente em vários trabalhos seus.
Assim, por exemplo, na conferência realizada na Universidade Popular de Setúbal, intitulada “As Universidades Populares e a Cultura”, Bento Caraça defendeu que se deve promover:
«A cultura de todos e isso é possível, porque ela não é inacessível à massa; o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante.»
E acrescentou:
«Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade – o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais.»
Foi nesta memorável conferência que Bento Caraça proclamou:
«Assim, cultura e liberdade identificam-se – sem cultura não pode haver liberdade e sem liberdade não pode haver cultura. Deve ainda a cultura tender ao desenvolvimento do espírito de solidariedade. Não apenas solidariedade de cada um com os da sua família, da sua aldeia ou da sua pátria – solidariedade do homem com todos os outros homens de todo o mundo.»
E Bento Caraça esclareceu:
«Este internacionalismo não significa não significa de modo nenhum a destruição da pátria, antes pelo contrário, implica a sua consolidação e o alargamento a todas as nacionalidades – a formação de pátria humana. O coração do homem é grande e nele cabe bem o amor da sua nacionalidade ao lado do amor de toda a humanidade.»
Na conferência intitulada “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso Tempo” e realizada na União Cultural “Mocidade Livre”, em 25 de Maio de 1933 (dois anos de dois meses depois da conferência referida anteriormente), Bento Caraça afirmou:
«A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico, significa, numa palavra, a conquista da liberdade.
E para atingir esse cume elevado, acessível a todo o homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se. A pureza que se respira no alto compensa bem da fadiga da ladeira.»
E mais adiante, sublinhou:
«(…) o que não deve nem pode ser monopólio de uma elite é a cultura; essa tem reivindicar-se para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria, ditando a todo o momento a tonalidade geral da orientação às elites parciais.
Só deste modo poderá levar-se a bom termo a realização daquela tarefa essencial que atrás vimos ser o problema central posto às gerações de hoje – despertar a alma colectiva das massas.»
2. Abolição de Privilégios Perante a Cultura
Em 10 de Abril de 1935 na conferência realizada na Sociedade de Estudos Pedagógicos e intitulada Escola Única, Bento Caraça declarou:
«A concepção que orienta a Escola Única é (…) a da abolição de privilégios perante a cultura – privilégios de sexo, privilégios de dinheiro, privilégios de crenças. A natureza humana é uma e todo o ser humano é, por consequência, portador dos mesmos direitos; a todos deve, portanto, ser proporcionada a completa aquisição dos conhecimentos que lhe permitam viver dignamente a vida, conforme as suas capacidades – uma só condição, uma só dignidade, uma só escola.
Caracterizado, assim, o sistema escolar que estamos estudando – igualdade de todos perante a cultura – vejamos agora quais as condições da sua realização.
(…)
Assim, à causa da divisão resultante dosa sexos, opor-se-á a coeducação; à causa de divisão resultante das crenças religiosas dos pais, opor-se-á o laicismo; ao motivo de privilégio que representa a desigualdade de situação económica, contrapor-se-á a gratuidade do ensino em todos os graus.»
E Bento Caraça acrescentou quase no fim da conferência:
«Dos confins da história caminham, ao encontro do homem de hoje, aquelas correntes fecundantes – laicismo, interesse colectivo, democratização integral da cultura – que hão-de fazer dele o homem novo, criador da cidade nova.»
Ocupou-se também da cultura em outros trabalhos, especialmente nas conferências “A Arte e a Cultura Popular”, realizada na Universidade Popular Portuguesa, em 1936, “Algumas Reflexões sobre a Arte”, cujo texto foi publicado em 1945 nos números 941 e 942 da revista Seara Nova; Aspectos do Problema Cultural Português, na sessão de 30 de Novembro de 1946, promovida pelo Movimento de Unidade Democrática no Salão de “A Voz do Operário”.
3. Os Militantes da Anti-cultura, Militantes da Opressão
Bento Caraça foi militante da cultura, uma militante da liberdade, enquanto os percursores e apoiantes de Salazar forma militantes da anti-cultura, militantes da opressão.
Em 1927, a escritora Virgínia de Castro e Almeida, numa altura em que havia 75% de analfabetos em Portugal, escreveu no jornal O Século que «A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa reside nesses 75 por cento de analfabetos»; e, à pergunta que ela própria faz em alusão aos rurais que aprenderam as primeiras letras, «Que vantagens foram buscar à escola?», ela mesma respondeu: «Nenhumas. Nada ganharam. Perderam tudo. Felizes os que esquecem as letras e voltam à enseada». O escritor e historiador João Ameal escreveu: «Portugal não precisa de escolas» (…) «Ensinar a ler é corromper o atavismo da raça». O escritor José de Sá Pereira Coutinho, Conde de Aurora, exclamava: «Felizes aqueles que não sabem ler!». Alfredo Pimenta, em oposição aos republicanos que diziam «abrir uma escola era fechar uma cadeia», declarava que «abrir uma escola era abrir dez cadeias», etc.
O próprio Salazar, numa entrevista a António Ferro, em 1933, afirmou: «Considero (…) mais urgente a constituição de vastas elites do que ensinar o povo a ler. É que os grandes problemas nacionais têm de ser resolvidos, não pelo povo, mas pelas elites enquadrando as massas»
Por isso as Escolas Normais, escolas de preparação de professores primários foram encerradas em 1936 e só reabertas em 1942, numa época em que a taxa de analfabetos era bastante superior a 50%. As escolas oficiais infantis foram extintas em 1937, de modo que o ensino ário
Foram criados os chamados Postos de ensino, cujos “mestres” eram designados por “regentes escolares” e iriam ser escolhidos «entre pessoas a quem não se exigiria qualquer habilitação, mas apenas a comprovação de possuírem “a necessária idoneidade moral e intelectual”. Assim se procedeu, de facto. (ver História do Ensino em Portugal, de Rómulo de Carvalho, pp. 736 – 737). Mais tarde, em consequência dos abusos cometidos, passou-se a exigir um exame de aptidão aos candidatos e para não se inquirir demasiadamente da competência desses candidatos o exame de aptidão constava de três provas escritas (Português, Aritmética e o restante exigível no ensino primário) de meia hora cada uma, e de uma prova oral de 10 minutos.
O ensino primário que tinha a duração de 4 anos, passou a ter a duração de três anos.
A perseguição aos funcionários públicos, especialmente professores, foi intensificada após a publicação do Dec. Lei nº 25317 de 13 de Maio de 1935, a fim de dar uma aparência de legalidade a tal perseguição. Logo após a publicação, foram expulsos 33 funcionários públicos civis e militares, entre os quais os professores universitários Abel Salazar, Aurélio Quintanilha, Manuel Rodrigues Lapa, Sílvio Lima e Norton de Matos (então professor no Instituto Superior Técnico) e os professores do ensino primário, Jaime Carvalhão Duarte e Manuel da Silva
Este decreto foi largamente utilizado contra professores de todos os graus de ensino. Dezenas e dezenas de docentes foram atingidos; só de uma vez, em Junho de 1947, foram expulsos 21 professores e assistentes universitários.
Em 7 de Outubro de 1946 foram expulsos os professores catedráticos Bento de Jesus Caraça, do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, e Mário de Azevedo Gomes, do Instituto Superior de Agronomia.
A demissão de Bento Caraça e a prisão sofrida alguma influência tiveram na sua morte prematura …
4 – A Obra Científica e de Divulgação Cultural de Bento Caraça
É um facto bem conhecido que, a partir de meados do século XVI, se agravou o isolamento do nosso País em relação aos outros Países e o isolamento interno de mais portugueses em relação em relação a outros portugueses.
Ora, como o matemático Gomes Teixeira preveniu no seu Elogio Histórico de Daniel Augusto da Silva, lida perante a Academia das Ciências em 2 de Junho de 1918,
«Não há nada mais prejudicial para a ciência de um povo que o seu isolamento no meio da ciência de outros povos. Este isolamento foi quase completo em Portugal na maior parte do século XIX e o motivo principal estava no desconhecimento da nossa língua nos meios científicos estrangeiros.»
A Inquisição e a Companhia de Jesus contribuíram, cada uma a seu modo, para manter, e até aumentar, o isolamento de Portugal em relação à Europa. Como escreveu o historiador Jaime Cortesão, no volume 1º, pp. 97 da sua obra Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid,
«O fanatismo, a intolerância feroz, a superstição em todas as classes, a degradação do culto, pelo amor da ostentação e o gosto de teatro, aumentaram. A Inquisição, que, durante os reinados anteriores dos Braganças, diminuíra de zelo sanguinário, multiplicou de novo as vítimas. Muitos dos melhores engenhos, como António José da Silva, Jacob de Castro Sarmento ou Ribeiro Sanches, quando de origem judaica, mau grado a sua íntima adesão ao sentimento da Pátria Portuguesa, ou arderam na fogueira ou tiveram que expatriar-se.»
O historiador José Hermano Saraiva, tendo presente a pedagogia praticada nos Colégios dirigidos pela Companhia de Jesus, escreveu na sua História Concisa de Portugal (pp. 197) o seguinte, a respeito da orientação seguida pela Companhia de Jesus:
«O objectivo era o de enraizar dogmas em que sinceramente se acreditava, não o de provocar críticas, porque o resultado das críticas é sempre o fim dos dogmas. O ensino não foi, pois, um treino para pensar, mas um alicerce para crer. E deu resultado, porque os portugueses do século XVII creram muito e pensaram pouco.»
Ora, se o Professor Bento Caraça tivesse podido ler uma afirmação que Evry Schatzman escreveu em 1971, a saber,
«Um ensino da ciência que não ensine a pensar, não é um ensino da ciência, é um ensino da submissão» (La Science Menacée, pp. 165)»,
certamente concordaria com esta afirmação pois ele sempre agiu de acordo com tal ideia.
Perante o isolamento secular, mantido pelas classes economicamente dominantes, perante o atraso que tal isolamento provocou, perante o ensino da submissão praticado por tais classes e agravado pelo fascismo, Bento Caraça não podia ficar indiferente e não ficou. Como professor de Matemática do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, procurou não só estudar e divulgar Matemática, mas colaborou activamente na criação de condições para que outros pudessem investigar e divulgar Matemática.
Assim, além das conferências a que já nos referimos, foram publicadas no volume intitulado Conferências e Outros Escritos as seguintes conferências de Bento Caraça: A Vida e a Obra de Evaristo Galois, Galileu Galilei – Valor científico e moral da sua obra; sob a designação de Outros Escritos, foram publicados os seguintes: A Luta contra a Guerra; O Único Remédio; Crepúsculo da Europa; Crítica Científica – Ciências Físico – Matemáticas; Sobre o livro do Dr. Carrel “O Homem Esse Desconhecido”; Um Dobre a Finados; “A Evolução da Física”, de Albert Einstein e Leopold Infeld; Abel e Galois; “Progresso. História breve de uma ideia”, por Magalhães Vilhena; Humanismo e Humanidade; Galileo e Newton; Romain Rolland; Respostas a uma Crítica; Carta a António Sérgio – crítico; Nota, em guisa de conclusão; Defesa. Contém ainda os eventos relativos à polémica com António Sérgio.
Foi fundador e director da Biblioteca Cosmos, possivelmente a iniciativa de maior influência cultural no nosso País até meados do século XX.
Elaborou e publicou os seguintes trabalhos de Matemática:
Sobre a intervenção do princípio de substituição dos infinitésimos no estabelecimento de algumas fórmulas fundamentais do Cálculo Diferencial, em 1929; Sobre a aplicação de um Interpolação e integração numérica, em 1930 e 1932; Lições de Álgebra e Análise (vol. I, em 1935 e vol. II, em 1940); Cálculo Vectorial, em 1937; Conceitos Fundamentais da Matemática falecimento)).
fundado, no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia e Bento Caraça foi o seu Director desde a sua fundação até à sua extinção em 1946, ano em que o fascismo o demitiu de professor catedrático, provando assim, mais uma vez, ser inimigo da cultura.
Neste Centro, que foi o primeiro Centro de Estudos de Matemática formado em Portugal, Zaluar Nunes (mais tarde expulso do seu lugar de professor catedrático do Instituto Superior de Agronomia) regeu em 1939 -1940, um Curso de Cálculo das probabilidades; Augusto Sá da Costa , (também mais tarde afastado do ensino) regeu um Curso de Introdução à Economia Matemática, em 1941 – 1942, o Centro participou no Congresso de Córdoba, de 1944, tendo sido aprovada por unanimidade uma proposta de Bento Caraça, «preconizando a unificação e coordenação dos estudos demográficos sobre as duas nações ibéricas».
Bento Caraça foi um dos fundadores da revista Gazeta de Matemática, juntamente com António Monteiro, José da Silva Paulo, Hugo Batista Ribeiro e Manuel Zaluar Nunes; dirigiu sempre a Secção de Pedagogia e nela publicou vários artigos de divulgação de Matemática e História da Matemática.
Colaborou na fundação da Sociedade Portuguesa de Matemática, em 1940, tendo sido eleito várias vezes Delegado da Sociedade Portuguesa de Matemática aos Congressos da Associação Luso – Espanhola para o Progresso da Ciência. Em 1943, foi eleito Presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática.
Foi Presidente da Universidade Popular Portuguesa
Embora Bento Caraça não tenha sido um investigador matemático, ele foi sem dúvida um investigador no campo do ensino da Matemática.
De facto, com respeito à sua obra Lições de Álgebra e Análise, Sebastião e Silva (considerado por António Monteiro como o maior matemático português) declarou:
«Na verdade, ele não foi um investigador, isto é, não foi um criador de ciência. (…) O que devemos admirar, sim, é o seu esforço de autodidacta, as suas invulgares qualidades de trabalho, de que as “Lições de Álgebra e Análise”são um dos frutos. E sinto-me inclinado a admitir que, sob esse aspecto, a sua actividade foi realmente criadora; isto é, sou levado a pensar que Bento Caraça criou, efectivamente um estilo de ensino da Matemática, de que eu próprio sou beneficiário.
(…)
Esta obra marca, sem dúvida, de modo brilhante, uma presença na história do ensino da matemática em Portugal. (…) E recordo-me bem do impacto que produziu quando o 1º volume apareceu, pela primeira vez, em 1935. Surgia então como algo de inteiramente novo que causava surpresa e entusiasmo entre os jovens estudantes de várias escolas. Um seu primeiro aspecto que chamava a nossa atenção era o de apresentar a Matemática, como se fosse ma obra de arte, numa nova linguagem – viva, clara, incisiva, cativante.»
(Vértice, nº 412, 413, 414, Bento Caraça e o ensino da Matemática em Portugal, de J. Sebastião e Silva).
Vem a propósito lembrar uma frase de Gomes Teixeira:
«Um trabalho matemático é, para quem o sabe ler, o mesmo que um trecho musical para quem o sabe ouvir, um quadro para quem o sabe ver, uma ode para quem a sabe sentir.»
Na literatura matemática portuguesa, a obra de Bento Caraça, Conceitos Fundamentais da Matemática, ocupa um lugar de grande destaque, parece que nada há que se lhe compare no esforço para ensinar a pensar, despertar a curiosidade pela matemática e vencer o medo da matemática.
É notável o Prefácio que começa por assinalar duas atitudes em face da ciência:
«A ciência pode ser encarada sob dois aspectos diferentes. Ou se olha para ela tal como vem exposta nos livros de ensino, como coisa criadora, e o aspecto é o de um todo harmonioso, onde os capítulos se encadeiam em ordem, sem contradições. Ou se procura acompanhá-la no seu desenvolvimento progressivo, assistir à maneira como sendo elaborada, e o aspecto é totalmente diferente – descobrem-se hesitações, dúvidas, contradições, que só um longo trabalho de reflexão e apuramento consegue eliminar, para que logo surjam outras hesitações, outras dúvidas, outras contradições.
Descobre-se ainda qualquer coisa mais importante e mais interessante: - no primeiro aspecto, a ciência parece bastar-se a si própria, a formação dos conceitos e das teorias parece obedecer só a necessidades interiores, no segundo caso, pelo contrário, vê-se toda a influência que o ambiente da vida social exerce sobre a criação da ciência.
A ciência, encarada assim, aparece-nos como um organismo vivo, impregnado de condição humana, com as suas forças e as suas fraquezas e subordinado às grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e pela libertação; aparece-nos, enfim, como um grande capítulo da vida humana social.»
E a seguir, Bento Caraça declara:
«Será esta atitude que tomaremos aqui. A Matemática é geralmente considerada como uma ciência à parte, desligada da realidade, vivendo na penumbra do gabinete, um gabinete fechado, onde não entram os ruídos do mundo exterior, nem o sol, nem os clamores dos homens. Isto, só em parte é verdadeiro.
Sem dúvida, a Matemática possui problemas próprios, que não têm ligação imediata os outros problemas da vida social. Mas não há dúvida também de que os seus fundamentos mergulham tanto como os de outro qualquer ramo da ciência, na vida real; uns e outros entroncam na mesma madre.»
As várias edições que a obra Conceitos Fundamentais da Matemática já teve ( e certamente ainda terá outras) reforçam naturalmente a ideia de que a orientação escolhida foi a mais adequada, foi amais útil para matemáticos e não matemáticos. De facto, tem havido não matemáticos que lêem com grande interesse Conceitos Fundamentais da Matemática.
A organização e redacção desta obra põem em relevo a militância do Autor pela cultura e as suas elevadas qualidades pedagógicas. De facto, esta Obra dá a impressão, a quem a lê, de que o Autor está conversando com o leitor.
Assim, há títulos de parágrafos que são perguntas feitas ao leitor.
Por exemplo, na 1ª parte, Cap. I:
4 – Põe a vida primitiva outros problemas?
13 – Existem outros conjuntos infinitos?
16 – Pode fazer-se uma anatomia do infinito?
No Cap. II:
25 – Os dois conjuntos, dos números inteiros e dos racionais, têm as mesmas propriedades?
Outros títulos não são perguntas, mas sugerem perguntas, despertam a curiosidade:
Cap. I – O problema da contagem
1 – A contagem, operação elementar da vida individual e social;
3 – Factores Humanos;
9 – Prevalência
10 – Princípio da extensão;
14 – Correspondência no infinito;
15 – Primeiras consequências do salto no desconhecido;
28 – Princípio de economia;
29 – Duas aplicações do princípio de economia
Cap. II – O problema da medida
3 – A operação de medição, a propriedade privada e o Estado;
4 – E assim nasceu a geometria;
7 – O dilema;
8 – O aspecto aritmético da dificuldade
9 – Os moldes do novo campo numérico
12 – A negação da negação
13 – O método de estudo;
etc.
Cap. III – Crítica do problema da medida
3 – Um caso embaraçoso
4 – A encruzilhada;
8 – A insuficiência da aritmética;
etc.
O texto contém várias perguntas, por exemplo:
Cap. IV – Um pouco de história
7- Donde resulta o devir? E porquê as coisas se transformam constantemente?
8 – O que distinguia, em relação à questão que estamos tratando, a escola pitagórica?
etc.
O texto motiva um diálogo permanente entre o Autor e o leitor; prende constantemente a atenção do leitor.
A leitura dos Conceitos Fundamentais da Matemática devia ser recomendada, pelo menos, a todos os estudantes universitários em cujo currículo figure alguma disciplina de matemática.
Observações:
1) No Cap. III da 2ª parte, intitulado Equações algébricas e números complexos, no parágrafo 17 – O teorema fundamental da álgebra – considera-se a equação
E indicam-se as suas raízes:, o que está certo, mas diz-se: ,
O que não é exacto. O sinal devia ser substituído por um sinal que significasse aproximadamente igual, por exemplo,.
Este exemplo tem grande interesse, porque a aplicação do método de Cardan-Tartáglia conduz ao resultado
E, como no campo real não existe, podia levar a pensar que a equação dada não tem solução. Ora, isto não é verdade, pois foram acima indicadas, tais soluções reais.
Assim, é inevitável a ampliação do campo numérico e fica motivada a criação dos números complexos.
2) Tal motivação seria mais rápida, recorrendo-se ao exemplo dado por Rafael Bombelli (~1526 – 1573).
Na sua Álgebra, publicada em 1572 (embora escrita já em 1550), considera a equação
Donde, por aplicação do método de Cardan-Tartáglia resulta
Onde intervém , que não existe no campo dos números reais. No entanto, é imediato que a equação considerada tem raiz 4. Tem até todas as raízes reais:
4, e .
Bombelli venceu a dificuldade do aparecimento de uma raiz quadrada de um número negativo, tratando, “como se de um número se tratasse” e encontrando números reais u e v tais que
e, como obteve u = 2, a soma
Resultou igual a 4.
Vale a pena ler essa passagem na Álgebra de Bombelli e ler o comentário que Pedro Nunes faz do final do seu Livro de Álgebra em Arithmetica y Geometria, intitulado El Autor Desta Obra A Los Lectores (pp. 393 – 412)
José Morgado,
Centro de Matemática da
Universidade do Porto