Abel Salazar Jamais Será Esquecido
Em 13 de Maio de 1935, o Governo do Estado Novo, publicou o famoso decreto – lei nº 25317, a fim de dar uma aparência de legitimidade às perseguições políticas que tinha planeado e estava planeando.
Assim os dois primeiros artigos desse decreto-lei diziam o seguinte:
«Art. 1º. Os funcionários públicos ou empregados, civis ou militares, que tenham revelado ou revelem espírito de oposição aos princípios fundamentais da Constituição Política, ou não dêem garantia de cooperar na realização dos fins superiores do Estado, serão aposentados ou reformados, se a isso tiverem direito, ou demitidos em caso contrário.
Art. 2º. Os indivíduos que se encontrarem nas condições do artigo anterior não poderão ser nomeados ou contratados para quaisquer cargos públicos nem admitidos a concurso para provimento neles.
A este artigo acrescenta-se o seguinte parágrafo:
§ Único: Quando o provimento se fizer mediante concurso por provas públicas, estas não poderão começar sem que ao respectivo Ministro seja dado conhecimento da lista dos candidatos com a antecedência de dez dias.
E seguiam-se outras disposições em que se determinava que a demissão, reforma ou aposentação e a exclusão de concursos ou escolas é sempre da competência do Conselho de Ministros. Das decisões deste quase omnipotente Conselho de Ministros só haverá recurso para o próprio Conselho, o qual será interposto, no prazo de oito dias, por simples requerimento, que poderá ser instruído com quaisquer documentos.
É claro que, com este decreto-lei, o governo salazarista ficava de mãos livres para demitir quem quisesse e impedir a participação num concurso de provas públicas aos candidatos de quem não gostava.
No art. 1º invocavam-se os princípios fundamentais da Constituição Política, Constituição que foi aprovada por plebiscito realizado em 19 de Março de 1933, plebiscito esse em que as abstenções foram descaradamente contadas como votos de aprovação.
Como qualquer dos outros governos fascistas então existentes, podia o governo do Estado Novo, com base no referido decreto, perseguir a seu bel-prazer os trabalhadores da Ciência e da Cultura, nomeadamente os professores de qualquer grau de ensino que considerasse desafecto ao regime.
Assim, logo após a publicação desse decreto-lei, foram expulsos, entre outros, os professores universitários Abel Salazar, Aurélio Quintanilha, Manuel Rodrigues Lapa, Sílvio Lima e Norton de Matos (então professor do Instituto Superior Técnico) e os professores do ensino primário Jaime Carvalhão Duarte, Costa Amaral e Manuel da Silva.
O famoso decreto-lei facilitava a perseguição governamental à ciência e à cultura, o que era uma espécie de mandamento do fascismo.
Como pode ler-se no artigo de Jacques Solomon intitulado Pour le Libre Développement de la Science, incluído no livro Pour la Science, da autoria de Joë Metzger (p. 152),
«Não se conhecem bem todos os golpes que o fascismo no poder conseguiu aplicar à pesquisa livre, à ciência, a qual receia que venha a ser um meio de libertação do homem. Desde à chegada de Hitler ao poder, as fogueiras de livros, as perseguições aos cientistas marcaram o desprezo dos fascistas pela inteligência. Em 1936, 1654 professores e eruditos tinham sido expulsos da Universidade; a maior Universidade alemã, a de Berlim, perdia a terça parte do seu efectivo. Em dez prémios Nobel da Física, cinco tiveram de deixar o país; em cinco prémios Nobel de Fisiologia e Medicina, três foram demitidos.»
Na página 96 do livro intitulado Mussolini et le fascisme, de Paul Guichonnet (nº 1225, da Colecção “Que sais-je?”), pode ler-se:
«A imitação mais deplorável do nazismo foi, a partir de 1938, a instauração do racismo e anti-semitismo. Com o apoio de universitários complacentes, um “manifesto em defesa da raça” foi difundido em Julho, exaltando a pureza do tipo físico italiano, imutável desde há mil anos e que devia ser preservado da sujeira. Foi seguido da criação do “Conselho Superior para a Demografia e a Raça”. Em Agosto, o regime começou a perseguir os judeus.»
Entre os professores perseguidos pelo fascismo italiano, contam-se: o astrónomo Arturo Guedes Horn, da Universidade de Bolonha, e os seguintes matemáticos: Beppo Levi e Benjamino Segre, da Universidade de Bolonha; Giron Fano, Guido Fubini, e Alessandro Terracini, da Universidade de Turim; Arturo Maroni, da Universidade de Pavia; Federigo Henriques e Túlio Levi-Cevita, da Universidade de Roma e Guido Ascoli, da Universidade de Milão.
Túlio Levi-Cevita (1873 – 1941) foi um grande matemático e um grande professor; os matemáticos portugueses Aureliano de Mira Fernandes (1884 – 1958) e Ruy Luís Gomes (1905 – 1984) correspondiam-se com Levi-Cevita, e foi por seu intermédio que Mira Fernandes publicou 17 trabalhos de investigação na revista italiana Rendiconti della Academia, no período 1928 – 1938 e Ruy Luís Gomes publicou 12 trabalhos de investigação, nessa revista, no período 1930 – 1937.
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Pelo que diz respeito a Portugal, muitas outras expulsões de docentes foram feitas e muitos foram impedidos de exercer funções docentes, por recusa de renovação de contratos ou por não aprovação de propostas de contrato apresentados pelos estabelecimentos de ensino.
Em 1946, foram expulsos, entre outros os professores catedráticos Bento de Jesus Caraça e Mário de Azevedo Gomes e, em 1947, só de uma vez foram expulsos, além de 11 militares, 21 docentes do ensino universitário, 2 professores extraordinários e 8 assistentes. Ainda em 1947, por exemplo, o professor catedrático Ruy Luís Gomes e o assistente Laureano Barros, não incluídos nos 21. Nos anos seguintes, o Estado Novo continuou a sua perseguição aos trabalhadores da Ciência e da Cultura, ajudado não só pelo decreto-lei 25317, mas também por uma tradição que já vinha de mais de 200 anos que durou a Inquisição em Portugal, por outras ditaduras que o Povo Português sofreu e ainda pela propaganda do analfabetismo levada acabo por partidários do Estado Novo.
Por exemplo, a ditadura miguelista, em 1829 reduziu a 600 as 900 escolas primárias então existentes e, pouco depois, suprimiu mais 50.
Como Rómulo de Carvalho regista na sua História do Ensino em Portugal,
«Só uma lista datada de 1828 aponta 218 nomes de mestres e de professores, de primeiras letras e latim, que tinham sido afastados do serviço. Também os estudantes eram motivo de preocupações para o Estado. Em 1828 e 1829 foram mandados riscar da Universidade de Coimbra 457 estudantes.»
A ditadura de Costa Cabral reduziu o âmbito do ensino das escolas primárias. As escolas então existentes, continuariam a funcionar mas só como escolas do 1º grau. Quanto ao ensino secundário, essa ditadura suprimiu o ensino da Língua Francesa e da Língua Inglesa, da Física, da Química e da História Natural. Excepcionalmente, os liceus de Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Évora e ilhas Adjacentes podiam ensinar Francês e Inglês.
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Entre os propagandistas do analfabetismo não se pode deixar de mencionar a escritora Virgínia de Castro e Almeida, que, em 1927, considerando que existiam nessa altura 75% de analfabetos,
«dizia, no jornal “O Século”, que “A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa, reside nesses 75% de analfabetos”. Em alusão aos rurais que aprenderam as primeiras letras, pergunta a escritora, e responde:
“Que vantagens foram buscar à escola? Nenhumas. Nada ganharam. Perderam tudo. Felizes os que esqueceram as letras e voltam à enxada.»
Não pode também deixar de ser mencionado João Ameal, que proclamou (ver Educação Nacional transcreveu) o seguinte:
«Ensinar o povo português a ler e a escrever, para tomar conhecimento das doutrinas corrosivas de panfletários sem escrúpulos, ou de facécias mal cheirosas que no seu beco escuro vomita todos os dias qualquer garoto da vida airada ou das mentiras criminosas dos foliculários políticos – inadmissível (…) Um dos factores principais da criminalidade é a instrução (…)».
E vários outros propagandistas do analfabetismo podiam ser citados (ver O Ensino Primário 1911 – 1969, Contribuição Monográfica, vol. II, 2º Período: 1926-195, de Salvado Sampaio, Instituto Gulbenkian da Ciência, Centro de Investigação Pedagógica, Lisboa, 1976).
A propaganda de analfabetismo era oficialmente estimulada. Assim, numa entrevista a António Ferro, o ditador declarou:
Considero (…) mais urgente a constituição de vastas elites do que ensinar o povo a ler. É que os grandes problemas nacionais, têm de ser resolvidos, não pelo povo, mas pelas elites enquadrando as massas.” (Ver Educação e Sociedade no Portugal de Salazar, de Maria Filomena Mónica, 1978, p. 116). O ministro da Educação Carneiro Pacheco determinou o encerramento das Escolas Normais em 1936 (reabertas somente em 1942) e extinguiu as escolas oficiais infantis em 1937, tudo isto numa altura em que era muito elevada a percentagem de analfabetos em Portugal.
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A perseguição movida pelo fascismo contra Abel Salazar não se limitou a expulsá-lo da Faculdade de Medicina do Porto; Abel Salazar foi também proibido de trabalhar no seu Laboratório e de frequentar a sua Biblioteca, talvez para sublinhar que não se tratava apenas de perseguir o professor, mas de perseguir também o cientista que, como histologista, era já muito conhecido além fronteiras.
O fascismo em Portugal, como noutros países, era inimigo da Ciência.
Como declarou em 1946 o professor de Biologia da Faculdade de Ciências de Lisboa, José Serra,
«Abel Salazar era um dos maiores, porventura o maior Biologista geral que já tivemos e mantinha relações amistosas com grande parte dos cultores da biologia e da Medicina portuguesas e com elevado número de colegas estrangeiros.»
Tempos depois, em 1941, na Faculdade de Farmácia do Porto, é criado um “Centro de Estudos Microscópicos”, sob o patrocínio do Instituto para a Alta Cultura. Abel Salazar dirigiu eese Centro e nele elaborou ou orientou cerca de 50 trabalos, alguns dos quais vieram a ter notável repercussão no estrangeiro.
Em colaboração, desde 1942, com o Instituto Português de Oncologia, a convite de Francisco Gentil, Abel Salazar publicou vários trabalhos científicos no Arquivo de Patologia.
Henrique Almeida, médico (já falecido), que foi aluno de Abel Salazar na cadeira de Histologia, escreveu o seguinte no seu livro Memórias ao Léu (p. 182):
«Eu chamava-lhe o nosso Leonardo da Vinci. E fui seu admirador incondicional, porque Abel Salazar gastou grande parte do seu talento a humanizar a vida, retratando criticamente as condições miseráveis da vivência das mulheres que, nos armazéns ou nas ruas, trabalhavam subjugadas ao poder económico capitalista.»
Assim, analogamente ao que aconteceu com Ruy luís Gomes e outros, Abel Salazar não se deixou vencer pelas perseguições que sofreu.
Embora em condições difíceis, continuou a trabalhar em Ciência, em Filosofia, em Arte. A sua acção como cientista, como filósofo, como artista, como cidadão, jamais será esquecida.
José Morgado
Centro de Matemática
Universidade do Porto