domingo, 23 de dezembro de 2007

Carta ao Professor Abílio Fernandes sobre o Professor Ruy Luís Gomes

Porto, 19 de Janeiro de 1982

Prezado Professor Abílio Fernandes

Só agora me é possível responder à sua carta de 11 deste mês, em que me pedia uma nota sumária das principais realizações do Professor Ruy Luís Gomes, na Reitoria da Universidade do Porto. Espero que a minha demora em responder à sua amável carta não lhe tenha causado qualquer transtorno. Desculpe.

1) Quando o Professor Ruy Luís Gomes assumiu as funções de Reitor, a Reitoria estava instalada numa pequena dependência da Faculdade de Ciências, faculdade que havia sido atingida por um incêndio, pouco dias antes do 25 de Abril.

Assim, houve que tomar, logo de início, providências para que as obras de restauro e ampliação da Faculdade de Ciências fossem começadas quanto antes. Houve também que arranjar instalações de emergência para outros cursos e Escolas da Universidade.

Conseguiu que o Senhor Bispo do Porto cedesse gratuitamente, por empréstimo, um seminário – o Seminário de Vilar – para instalação do Curso de História (foi precisamente neste seminário que começaram as actividades do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar).

Conseguiu que se comprassem os edifícios do Colégio Almeida Garrett, para instalação dos primeiros anos da Faculdade de Engenharia.

Iniciaram-se as obras de construção de um edifício para a instalação da faculdade de Letras.

2) Diligências feitas junto do Ministro V. Magalhães Godinho em 1974 tiveram como resultado a nomeação de uma Comissão (de que fizeram parte Ruy Luís Gomes, Corino de Andrade, Nuno Grande, Neves Real) para apresentarem um projecto de criação do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.

O decreto-lei que criou o ICBAS data de 19 – 8- 75, sendo então Ministro da Educação o major José Emílio da Silva.

Em 16-10-75, tomou posse a Comissão Instaladora do ICBAS, constituída por:

- Ruy Luís Gomes (reitor, presidente);

- Corino de Andrade (neuropatologista, director dos Serviços de Neurologia do Hospital Geral de Santo António);

- Aloísio Coelho (subdirector do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge e Professor da Escola de Saúde Pública);

- Pereira Guedes (?) (chefe dos Serviços de Análise do Hospital Geral de Santo António)

- Neves Real (matemático, professor da Faculdades de Ciências);

- Nuno Grande (professor catedrático da Universidade de Angola; actual Presidente do Conselho Directivo)

- João Monjardino (?) (Sénior Investigador da Escola Médica do Royal Free Hospital de Londres)

Foi o Secretário de Estado António Brotas que se deslocou ao Porto para dar posse à Comissão; era então Ministro da Educação o major Vítor Alves.

O ICBAS corresponde a um projecto de formação, não de apenas mais uma Faculdade de Medicina, mas de um Instituto de Biologia Aplicada.

Para isso, o Prof. Ruy Luís Gomes procurou reunir investigadores portugueses de grande mérito residentes no País ou no estrangeiro, tais como, Alexandre Quintanilha, Arala Chaves, Lima de Faria, Ângela de Sousa, Teles Grilo.

Actualmente o ICBAS compreende a licenciatura em Medicina (em colaboração com o Hospital G. de Santo António, para o ciclo clínico), a licenciatura em Ciências do Meio Aquático (em colaboração com várias escolas, especialmente da Universidade do Porto) e colabora na licenciatura em Bioquímica da Faculdade de Ciências do Porto.

Quanto ao espírito que animou a criação do ICBAS, julgo serem elucidativas algumas palestras realizadas há já quase 40 anos, por Ruy Luís Gomes, Corino de Andrade e António Aniceto Monteiro.

Tomo a liberdade de lhe enviar uma cópia destas palestras.

Não foi nada fácil firmar a criação do ICBAS; basta dizer-lhe que o Ministro Cardia chegou a ter pronto para publicação o decreto de extinção do ICBAS! ...

3) A preocupação de reunir, na Universidade, investigadores de alto mérito foi sempre uma preocupação do Professor Ruy Luís Gomes.

Assim foram chamadas, entre outros, para trabalhar na Universidade do Porto, e vieram para esta Universidade,

Hugo Baptista Ribeiro (matemático)

Armando de Castro (economista)

Óscar Lopes (escritor e especialista em linguística)

Ricardo Lima (matemático)

Muitos outros, que foram chamados, não puderem vir (por motivo de impossibilidades pessoais ou por falta de colaboração de organismos universitários), tais como,

António Aniceto Monteiro (matemático)

António Barros Machado (biólogo)

Manuel de Oliveira (cineasta)

4) Após o falecimento de Abel Salazar em 29 de Dezembro de 1946, um grupo de amigos e admiradores pensou criar uma Fundação Abel Salazar, com o objectivo de organizar a CASA MUSEU ABEL SALAZAR.

Houve naturalmente muitas dificuldades. Os estatutos não foram oficialmente aprovados…

Quando Ruy Luís Gomes estava no Brasil (em 3-6-63) foi criada uma Cooperativa “Sociedade Divulgadora da Casa Museu Abel Salazar”, que tem como primeiro objectivo, nos seus Estatutos, a Criação da Casa Museu Abel Salazar. Entrou em contacto com Fundação Gulbenkian para financiar a restauração da Casa e aquisição das obras de Abel Salazar, o que foi conseguido.

Em 31-5-75, a Fundação Gulbenkian fez a doação da Casa Museu à Universidade do Porto – após a restauração da Casa e construção, no terreno anexo, de um pavilhão para exposições.

É nesse pavilhão que se encontra a colecção que pertenceu à irmã de Abel Salazar e que foi comprada pela Gulbenkian.

Embora situada nos arredores do Porto, em S. Mamede de Infesta, a Casa Museu começa de facto a ser conhecida e visitada por apreciável número de pessoas. Assim, em 1981, o número de visitantes ultrapassou os 1500.

5) Foi ainda o reitorado do Professor Ruy Luís Gomes (que não chegou a ano e meio), que foi doada à Universidade uma importante Biblioteca, pelo Dr. Pedro Veiga. A esta Biblioteca foi naturalmente dado o nome de “Biblioteca Pedro Veiga”. Compreende mais de 60 000 mil volumes, dos mais variados domínios do saber e pode vir a ser um centro importantíssimo de actividades culturais muito interessante.

Meu Ex.mo Amigo

Creio que ficam aqui reunidas as principais actividades do Professor Ruy Luís Gomes, durante o seu curto reitorado.

Se em mais alguma coisa lhe puder ser útil, queira dispor do

José Morgado

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Homenagem ao Professor Ruy Luís Gomes

Almoço de Homenagem ao Professor Ruy Luís Gomes (Porto, 14 de Abril de 1984)

Um grupo de democratas resolveu comemorar o 10º aniversário da Revolução de Abril, publicando um documento em que se lançava a ideia de uma homenagem, de âmbito nacional, ao Prof. Ruy Luís Gomes. A grande receptividade que esta ideia encontrou, está amplamente demonstrada pelos muitos amigos que participam ou se fazem representar neste almoço e pelos muitos outros que quiseram subscrever o nosso documento ou, de alguma forma, se associaram à nossa iniciativa.

É claro que não estranhamos o apoio entusiástico recebido – nós contávamos com tal apoio. Sabíamos que era possível reunir muitos e muitos democratas, de diferentes opções políticas, para homenagear o grande resistente antifascista Prof. Ruy Luís Gomes e defensor das conquistas de Abril.

Sabíamos que, na homenagem ao Prof. Ruy Luís Gomes, se reuniriam, não apenas democratas de diferentes opções políticas, mas também das mais variadas profissões e sectores sociais.

É que, excluindo naturalmente aqueles que por motivo de classe, sempre estiveram e estão contra o ascenso das massas populares, em todas as profissões e sectores democráticos o Prof. Ruy Luís Gomes tem amigos e admiradores.

O psicólogo Henri Wallon disse uma vez, a propósito de Paul Langevin:

«É impossível separar, em Paul Langevin, o físico do filósofo, o filósofo do cidadão, o cidadão do educador.»

Creio que nenhum de nós tem dificuldade em aceitar que, mediante pequenas alterações (como, por exemplo, a substituição da palavra “físico” pela palavra “matemático”), a afirmação de Henri Wallon se ajusta perfeitamente à personalidade do Prof. Ruy Luís Gomes.

De facto, a vida do investigador e professor Ruy Luís Gomes está intimamente ligada à vida do cidadão e resistente antifascista Ruy Luís Gomes. Os vários aspectos por que possamos encarar a vida de Ruy Luís Gomes, não se opõem uns aos outros. Uns e outros são solidários, uns e outros constituem, afinal, a vida do Homem Ruy Luís Gomes.

Na sua luta pela ciência e pela renovação do ensino e, num plano mais geral, na sua luta pela cultura, o Prof. Ruy Luís Gomes encontrou pela frente, como opositor, o capitalismo monopolista, organizado sob a forma de estado fascista e colonialista; e encontrou, ao seu lado, como aliados, os combatentes democratas, os intelectuais antifascistas, os jovens progressistas e os trabalhadores com mais elevada consciência de classe.

Em face desta distribuição de forças, o Prof. Ruy Luís Gomes decidiu seguir o caminho que a sua dignidade lhe impôs – decidiu coerentemente e de uma vez para sempre, acompanhar os combatentes democratas, os intelectuais antifascistas, os jovens progressistas e os trabalhadores mais conscientes e, como não podia deixar de ser, decidiu dar combate ao ,

A opção que tomou, ditada pelo seu sentido de dignidade, não foi difícil; as repercussões para o movimento científico português de então e, em especial, para o movimento matemático português dos anos 40, as repercussões para a sua vida profissional e para a sua vida pessoal, essas, sim foram muito duras. A demissão do seu lugar de professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, a pretexto da sua tomada de posição contra a prisão de uma estudante da mesma Faculdade, a interrupção brutal das actividades em curso para a formação, no Porto, de uma escola actualizada de Matemática, nos anos 40, as muitas prisões da PIDE, os vários julgamentos e condenações nos Tribunais Plenários de Lisboa e Porto, injúrias e difamações, agressões físicas e um exílio de quase quinze anos, são algumas das repercussões que o Prof. Ruy Luís Gomes teve de suportar em consequência da sua opção contra o fascismo.

O mesmo entusiasmo e elevação com que fazia as suas lições de Física Matemática na Faculdade de Ciências do Porto, a mesma dedicação e alegria com que fundou o Centro de Estudos Matemáticos do Porto e colaborou na fundação do Observatório Astronómico do Porto, da Sociedade Portuguesa de Matemática, da Junta de Investigação Matemática e outras instituições científicas, esse mesmo entusiasmo e elevação, essa mesma dedicação e alegria caracterizavam a sua participação em todas as grandes lutas desencadeadas no nosso País pelas liberdades democráticas, pela melhoria das condições de vida do Povo Português, pela Independência Nacional e pela Paz entre os Povos.

Amigos!

Em 20 de Abril de 1949, em Paris, na sala Pleyel, um grande cientista que o Prof. Ruy Luís Gomes muito admirou, Frédéric Joliot-Curie, perante mais de 2000 delegados, provenientes de 72 países e representando um bilião de pessoas, declarou aberto o 1º Congresso Mundial dos Partidários da Paz.

Uma ovação entusiasta acolheu as suas palavras que marcaram a orientação de luta dos Partidários da Paz:

«Nós não nos reunimos para pedir, mas, sim, para impor a paz aos partidários da guerra.»

Joliot-Curie explicou, nesse Congresso, como, no seu combate pela ciência, na sua luta contra a utilização abusiva das descobertas científicas pelos fautores da guerra, foi conduzido à luta pela Paz. Consciente de que as implicações sociais das descobertas científicas reforçam as responsabilidades dos trabalhadores científicos, Joliot-Curie afirmou:

«Os cientistas, colocados em face das suas responsabilidades, não podem ser cúmplices daqueles que uma má organização social deixa explorar os resultados dos seus trabalhos para fins egoístas e malfazejos.

Os sábios não podem constituir-se em uma pequena elite afastada das contingências práticas; como membros, que são, da grande comunidade dos trabalhadores, eles têm de se preocupar com o uso que será feito das suas descobertas. Eles querem que a ciência seja colocada e fique ao serviço do Povo.»

O nosso homenageado de hoje é precisamente um cientista que não ficou passivo e também quer que a ciência seja colocada e fique ao serviço do Povo. Por isso, se levantou contra a organização social que utiliza os resultados dos trabalhos científicos para fins egoístas e malfazejos. Por isso se levantou e se declara contra o capitalismo monopolista.

Esta atitude granjeou-lhe naturalmente o ódio dos fascistas e aliados, mas granjeou-lhe também a admiração e amizade dos patriotas portugueses e dos Partidários da paz de todo o Mundo.

Assim, quando em 1952, esteve preso por tomar posição pública, juntamente com a Engenheira Virgínia Moura, o Operário Albertino Macedo e eu próprio, a favor de um Pacto de Paz e contra o Pacto do Atlântico, foi divulgada uma carta do Presidente do Conselho Mundial da Paz, Joliot-Curie, que dizia o seguinte:

«Paris, 9 de Junho de 1952.

Foi com grande emoção que tomei conhecimento das provações cruéis de que está sendo vítima o meu colega Ruy Luís Gomes, Professor de Matemática da Universidade do Porto – actualmente preso por causa da sua corajosa intervenção a favor da Paz.

O Prof. Ruy Luís Gomes, como cidadão de um país de grande cultura, defende com coragem uma política sincera de Paz, de colaboração pacífica entre os Povos do Mundo. É nessa mesma acção que nós prosseguimos, nos nossos respectivos países, para salvar a Humanidade de uma terceira guerra mundial.

Não se pode duvidar da sinceridade, do valor humano, do pensamento e dos actos de um homem como Ruy Luís Gomes.

É por isso que junto a minha voz à voz de todos os homens desejosos de paz, para reclamar, em nome dos mais altos princípios da Humanidade, que o Professor Ruy Luís Gomes possa livremente, consagrar-se às suas actividades inseparáveis de sábio e de cidadão.

Frédéric Joliot-Curie»

O Professor Ruy Luís Gomes sabe que, na sociedade do futuro, a ciência ocupará um lugar especial. Os conhecimentos científicos elevam a capacidade criadora e elevam a qualificação dos trabalhadores. Por isso, os conhecimentos científicos de alto nível serão necessários a todos os trabalhadores, qualquer que seja o ramo da sua actividade.

Com a conquista da Paz e do socialismo, a técnica será posta ao serviço do homem e não ao serviço da exploração do homem pelo homem; as actividades científicas aproveitarão a toda a Humanidade e não aos blocos político – militares.

Com a técnica ao serviço do homem, as funções não criativas tenderão a ser mecanizadas e automatizadas, sem que isso provoque o desemprego e a fome. Para o homem, liberto da maior parte das actividades não criativas, serão reservadas as actividades de natureza essencialmente criativa e a realização de tais actividades seguirá naturalmente o domínio das conquistas científicas e culturais alcançadas pela Humanidade, as conquistas científicas e culturais que são património de toda a humanidade.

Assim, o desenvolvimento consequente das actividades científicas, a utilização da técnica em benefício do homem, a conquista da sociedade do futuro são, em nossa opinião, inseparáveis da luta pela paz e pelo socialismo.

Por isso, a luta consequente do Prof. Ruy Luís Gomes pelo fortalecimento da cultura matemática em Portugal, pelo incremento da actividade científica no nosso País e a consciência das implicações sociais do desenvolvimento científico conduziram-no naturalmente à participação, ao lado do Povo, na luta pela Paz e pelo socialismo.

Amigos!

É um facto que atravessamos um período de grandes preocupações, quer no plano interno, quer no plano externo.

No plano interno, em consequência da opção capitalista ou neo-capitalista dos que actualmente detêm o poder, vemos deteriorar-se as condições de vida do Povo Português, chegando a estar ameaçado o próprio nível mínimo de subsistência de muitos e muitos milhares de trabalhadores portugueses e correm perigo as liberdades democráticas tão duramente alcançadas com a Revolução dos Cravos.

No plano externo, em consequência da falta de perspectivas do imperialismo e do seu esforço desesperado para tentar sobreviver, vemos o imperialismo lançar-se em provocações directas contra a emancipação dos povos, provocações que constituem sérias ameaças à Paz mundial.

Mas, apesar destes perigos reais para o socialismo e para a Paz, nós, Portugueses, temos motivos muito especiais para não desanimar, temos motivos muito especiais para estar confiantes.

De facto, nós constituímos um povo que sofreu meio século de fascismo e, no entanto, fez Abril!

Constituímos um povo que sofreu as consequências de longas guerras coloniais em África e, no entanto, construímos laços de amizade indestrutível com os Povos Africanos!

Constituímos um povo que, nas prisões fascistas, nos campos de concentração e no exílio, sempre soube cantar e comunicar a esperança, sempre soube cantar e lutar pela liberdade!

Sabemos que capitalismo monopolista não tem futuro em Portugal e que o imperialismo não pode sobreviver à solidariedade entre os povos.

Parafraseando Sampaio Bruno, podemos dizer:

«Contra a ideia do socialismo em Portugal, nada pode coisa nenhuma; nada a diminui, nada a destrói, nem sequer os nossos próprios erros, porquanto ela é a condição histórica e actual imprescindível da nossa nacionalidade.»

Assim, apesar de todos os acidentes de percurso, as conquistas essenciais do 25 de Abril são irreversíveis, quer queiram quer não uns tantos remanescentes do passado fascista e uns tantos pescadores de águas turvas que se aliaram aos inimigos internos e aos inimigos externos do 25 de Abril!

25 DE ABRIL SEMPRE!

FASCSMO NUNCA MAIS!

VIVA O 25 DE ABRIL!

José Morgado

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Homenagem a Óscar Lopes

Homenagem a Óscar Lopes

Amigos

Recebi do Conselho Português para a Paz e Cooperação a incumbência de o representar nesta homenagem nacional a um dos seus membros, o Professor Óscar Lopes.

É com grande prazer que aqui estou para saudar Óscar Lopes, Amigo de há muitos anos.

Saúdo o defensor da Paz e Cooperação entre os Povos, pela sua firmeza e pela sua coerência; saúdo o universitário pela sua seriedade e elevação do seu trabalho de investigador e pela sua actividade e eficácia do seu ensino; saúdo o companheiro que, uma vez, há mais de trinta anos, encontrei, preso com eu, na sede da PIDE, na Rua do Heroísmo.

Imagino que o Professor Óscar Lopes, lá num recanto da sua intimidade, talvez sinta uma certa tristeza, em consequência do término da sua vida profissional de professor, pela possível diminuição, daí resultante, da sua convivência com a Juventude – tristeza que talvez coexista com a alegria de ver, neste momento, tantos amigos reunidos à sua volta.

Mas estou certo de que o cidadão Óscar Lopes não verá diminuída a sua convivência com a Juventude, porque o cidadão Óscar Lopes, a Juventude e todos nós temos interesses fundamentais comuns a defender.

Com efeito, todos nós estamos profundamente interessados em dizer “Não às armas nucleares”. Todos nós estamos apostados em conseguir que, na nossa Terra, não sejam armazenadas armas nucleares. E nas acções a favor da Paz, em que o cidadão Óscar Lopes vai participar, encontrará ao seu lado (estou convencido disso) muitos e muitos jovens.

Amigos!

Pela nossa acção unida, conseguiremos que Portugal não seja reduzido à condição de fábrica nem de armazém de armas de destruição em massa.

Temos o direito e o dever de reclamar que os órgãos de soberania declarem, sem ambiguidades, que tudo farão pela desnuclearização do nosso país, que os aviões F-16 e quaisquer outros que sejam portadores de armas nucleares não virão para Portugal, nem por cá por cá passarão!

Nós temos o direito à Paz e vamos ganhar a Paz!

José Morgado (21/11/1987)

Carta ao Coordenador da publicação "História de Portugal em Datas"

Carta ao Dr. António Simões Rodrigues,

Coordenador da publicação

“História de Portugal em Datas”,

Do Círculo de Leitores.

Permita-me V. Ex. ª que chame a sua atenção para uma inexactidão contida na página 353 do livro “História de Portugal em Datas”. Afirma-se nessa página que, em 19 de Agosto de 1954,

«Vários dirigentes do MND, entre os quais se encontrava Rui Luís Gomes, são detidos pela PIDE, julgados no Tribunal Plenário do Porto e condenados por “traição à Pátria”.

O seu “crime” foi o de terem defendido publicamente a necessidade de o governo português estabelecer negociações com a União Indiana a propósito dos territórios coloniais que Portugal mantinha no subcontinente indiano.

Dos cinco dirigentes do MND que então foram presos pela Pide e cerca de dez meses depois, julgados, e condenados pelo Tribunal Plenário do Porto, apenas dois estão ainda vivos: a Engenheira Virgínia Moura e o signatário desta carta.

É verdade que fomos acusados de “traição à Pátria” e de vários outros crimes, a pretexto de um documento assinado pelos membros da Comissão Central do Movimento Nacional Democrático, Professor Ruy Luís Gomes, Engenheira Virgínia Moura, José Morgado e Operário Albertino Macedo, e enviado aos jornais com o pedido de publicação. Nesse documento, manifestávamos a nossa total discordância da política colonial do governo de Salazar, defendíamos as liberdades democráticas e a autodeterminação dos povos e preconizávamos que o diferendo surgido com a União Indiana fosse resolvido por negociações.

Os jornais, então sujeitos à Censura imposta pelo governo da ditadura, não publicaram o nosso documento e nós fomos encarcerado pela Pide e acusados de vários “crimes”, incluindo o de “traição à Pátria”.

No relatório que enviou a Tribunal, a Pide lamentava que já não houvesse pena de morte em Portugal, porque, se ainda houvesse ela deveria ser-nos aplicada.

O representante do Ministério Público de então não podia, evidentemente, pedir, para nós a pena de morte, mas parece ter feito o que lhe era possível para que nos fosse aplicada uma pena que os partidários da ditadura salazarista pudessem considerar “exemplar”: pronunciou-se por uma pena de cerca de 50 anos de prisão, seguidos ainda de medidas de segurança com internamento por períodos de um a três anos. Por outras palavras, pronunciou-se, na prática, por uma prisão perpétua, inclusivamente para os nossos próprios cadáveres pois parece que ele os considerava perigosos para a sobrevivência da ditadura! …

Mas a onda de protestos populares que a nossa prisão provocou por todo o País, onda de protestos que nem a Pide, nem a Legião, nem todas as forças repressivas juntas conseguiram impedir, acrescida da prova testemunhal produzida em Tribunal por democratas de todas as correntes políticas então existentes – o que constituiu um magnífico exemplo de Unidade de acção Contra o Fascismo – não permitiu que o Tribunal mantivesse a infame acusação de “traição à Pátria”, nem as outras acusações a que correspondesse pena de prisão maior.

documento foram condenados em 24 meses de prisão correccional; o arquitecto Lobão Vital, que fazia parte do MND, mas não era signatário do documento, foi condenado em 10 meses de prisão correccional.

Várias vezes presos e julgados, nunca fomos condenados por traição à Pátria.

Assim, certamente por lapso, a afirmação contida na página 353 da “História de Portugal em Datas”, atrás transcrita, é muito incorrecta e injusta e, naturalmente, V. Ex.ª a procurará corrigir, na oportunidade de uma nova edição, se não puder fazê-lo antes.

E talvez, V. Ex.ª possa incluir outras correcções menores, como, por exemplo, as seguintes:

- Na página 348, verbete [Abril], onde está MDN, devia estar MND (Movimento Nacional Democrático, que foi fundado não em Abril, mas logo após o acto eleitoral de Fevereiro de 1949, na sequência de uma moção lida e aprovada por aclamação, na última sessão de propaganda da Candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, realizada em Lisboa, na Voz do Operário, em 16 de Fevereiro de 1949).

-Na página 349, verbete [Junho], onde está MDN, devia estar MND

-Na página 350, verbete [3 de Julho], em que se afirma que,

«No fim de uma sessão eleitoral realizada em Rio Tinto, Rui Luís Gomes e outros elementos da sua candidatura são agredidos “por apoiantes do Estado Novo” (agentes da Pide e membros da LP)»,

Devia ter sido escrito que, após a interrupção intempestiva da sessão eleitoral da Candidatura do Professor Ruy Luís Gomes à Presidência da República, pelo representante do Governador Civil do Porto, sessão que decorria com grande entusiasmo e civismo, no Cinema de Rio Tinto, já depois terem saído quase todas os que assistiram à sessão, quando o Candidato e alguns dos seus colaboradores aguardavam junto ao cinema os carros que os deviam conduzir ao Porto, uma força da Polícia de Segurança Pública, comandada pelo Capitão Nazaré investiu contra o Candidato e seus companheiros, agredindo-os à cacetada, pisando-os raivosamente depois de derrubados na escadaria do cinema e insultando-os grosseiramente.

Vários feridos, entre os quais Ruy Luís Gomes, Virgínia Moura, Lobão Vital e José Morgado, tiveram de ser conduzidos, por companheiros de luta, ao Hospital de Santo António, onde foram tratados com todo o carinho pelo pessoal de serviço.

- Na página 351m verbete [Fevereiro], onde se diz que,

«Diversos elementos da Comissão Central do MND são presos por terem participado nessa campanha» [contra o Pacto do Atlântico],

Devia dizer-se que

«diversos elementos do MND foram presos, na sequência da elaboração, publicação e distribuição de um documento assinado pela Comissão Central do Movimento Nacional Democrático, intitulado “Pacto de Paz e não Pacto do Atlântico”, onde defendiam uma política de colaboração entre os Povos, contra uma política de confrontação entre países de regimes diferentes.»

Com os melhores os melhores cumprimentos,

Porto, 27 de Dezembro de 1994

José Morgado

(segue-se a direcção)

NOTA: Que eu saiba, até hoje, nunca foi dada qualquer resposta a esta carta, nem foi feita qualquer correcção. Assim, as pessoas morrem deixa-se na história aquilo que o fascismo, com a sua polícia, os seus tribunais, o seu terror não conseguiu. Na altura em que esta obra foi publicada, teria sido fácil evitar as falsidades, erros ou imprecisões, desde que para tal houvesse vontade.

Paulo Morgado

Nota sobre a Universidade Popular do Porto

Nota Sobre a Universidade Popular do Porto

1-1-Instrução da Mulher em Portugal

No livro de Joaquim Ferreira Gomes, nascido em 18 -10 -1928, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, livro intitulado “Estudos para a História da Educação no século XIX”, pode ler-se o seguinte (pág. 43):

«A instrução da mulher, na organização do ensino público entre nós, está num imenso atraso. Os factos provam esta verdade. Se indagarmos quantas são as escolas, ficaremos sabendo que, em números redondos, há 3700 do sexo masculino e apenas 840 do sexo feminino. De 4 000 freguesias, 3650 não possuem escolas para mulheres.»

Mais adiante (pág. 44 – 45), Ferreira Gomes transcreve, do Relatório do Decreto de 16 de Agosto de 1870, o seguinte:

«Com uma população de 4 200 000 habitantes no Continente e com 4 800 freguesias, tem Portugal apenas (segundo os últimos dados) 2 300 escolas oficiais e, destas, só 350 são do sexo feminino. Para estarmos, não diremos na situação que recomendavam as necessidades da população e do ensino, mas apenas na situação em que se acha a Espanha, devíamos ter 7 000 escolas oficiais; 8 000 em relação à França, Bélgica e Baviera; 10 000 a 12 000 para correspondermos proporcionalmente `Inglaterra, Holanda Suécia e Prússia; devíamos ter 21 000 para ombrearmos com os Estados Unidos; e, em lugar de tudo isto, possuímos apenas 2 300 escolas! Contando mesmo com as escolas livres, deveríamos ter 12 000 escolas oficiais; e apenas possuímos 2 300.

Em Espanha, há 1 escola para 600 habitantes; e, França, Baviera, Itália, Holanda e Inglaterra, 1 para 500 e 400; na Suécia 1 para 300; nos Estados Unidos, 1 para 160; na Prússia, 1 para 150. Portugal tem 1 escola para 1 110 habitantes!»

2- O isolamento imposto ao Povo Português

Os números apontados põem em relevo uma forte discriminação contra as mulheres no nosso país. Uma tal discriminação existiu também em vários outros países. Por exemplo, Lise Meitner (1878 – 1968), investigadora e professora austríaca, doutorada em Física pela Universidade de Viena, foi proibida de entrar no laboratório da Universidade de Berlim; Marie Curie, já galardoada com dois Prémios Nobel, foi-lhe negado, em 1911, o ingresso na Academia das Ciências de Paris; Maria Goeppert-Mayer teve grande dificuldade em obter emprego; doutorada em 1930, leccionou em várias universidades americanas; publicou, em 1955, em colaboração com o cientista alemão Prof. Jensen o trabalho de investigação Elementary Theory of Nuclear Shell Structure; só conseguiu emprego quatro anos depois de ser eleita membro da Academia Nacional de Ciência (EUA) e três anos de receber o Prémio Nobel da Física

Os preconceitos contra a mulher culta eram tais que J. J. Rousseau, terá afirmado:

«a mulher de cultura é uma praga para o marido, para os filhos, para a família, para os criados, enfim para todos.» (Informações colhidas no livro Mulheres na Ciência, Introdução, Apresentação e Tradução de A. M. Nunes dos Santos, M. Amélia C. Bento e Christopher Auretta).

Mas, infelizmente, não era só sector da educação de mulheres portuguesas que éramos um país atrasado.

Notemos que, no século XVI, Portugal pôde contar com trabalhadores intelectuais do nível de:

Gil Vicente, Bernardino Ribeiro, Diogo Bernardes, Luís de Camões, Sá de Miranda, André de Resende, Garcia de Resende, Fernão Mendes Pinto, Damião de Góis, Frei Agostinho da Cruz, Frei Heitor Pinto, Frei Amador Arrais, Fernão de oliveira, Jerónimo Osório, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Duarte Pacheco Pereira, Garcia de Orta, Pedro Nunes, António Ferreira, André de Avelar.

Mas, no século XVII, século tão fecundo em vários domínios científicos , especialmente em Matemática, século que pôde contar com as actividades de:

John Neper, Thomas Harriot, William Oughtred, Galileo Galilei, Isaac Newton, Gérard Desargues, Blaise Pascal, Johan Kepler, René Descartes, Pierre Fernand, Christian Huygens, Gottfried leibniz.

Cientistas notabilíssimos, mas nenhum deles era português; acontece até que nenhum deles era ibérico!

Isto significa que, depois do século XVI, Portugal entrou em decadência acentuada, como resultado do isolamento que sofreu, não apenas em relação a outros países, mas também isolamento de uns portugueses em relação a outros portugueses.

Foi por terem consciência de tal isolamento que, no século XIX, o grande poeta Antero de Quental e seus companheiros Adolfo Coelho, Augusto Soromenho, Eça de Queirós, Germano Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Sáragga e Teófilo Braga, resolveram promover a realização das célebres “Conferências Democráticas do Casino Lisbonense”.

No documento datado de 16 de Maio de 1871, põe eles assinado, dizia abertamente que,

«não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve também ser assunto das nossas constantes meditações».

E a primeira conferência, intitulada “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos”, que foi realizada por Antero em 27 de Maio de 1871, começava por declarar que,

«a decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história».

Seguiram-se as conferências realizadas por Augusto Soromenho (“A Literatura Portuguesa Contemporânea”), por Eça de Queirós (“O Realismo como expressão de Arte”) e por Adolfo Coelho (“A Questão do Ensino”).

Todas as outras conferências planeadas por Antero e seus companheiros foram proibidas pelo Presidente do Conselho de Ministros, António José d’ Ávila (1806 – 1881), o Marquês d’ Ávila e Bolama.

Presidente do Conselho de Ministros, que continuou (e possivelmente refinou) o isolamento cultivado pela classe economicamente dominante.

Contra tal isolamento não se pronunciaram somente Antero de Quental e seus companheiros.

Por exemplo, Gomes Teixeira, no seu “Elogio Histórico de Daniel Augusto da Silva” afirmou (p. 160):

«nada há mais prejudicial para a ciência de um povo do que o seu isolamento no meio da ciência de outros povos» (Conferência na Academia das Ciências de Lisboa, em 2 de Junho de 1918)

Gomes Teixeira põe também em relevo, na sua “História das Matemáticas em Portugal”, como causa da decadência da cultura científica do nosso país, a expulsão dos judeus no tempo de D. Manuel I, dizendo que (pp. 198 – 199)

«Este monarca protegeu as Matemáticas, criando uma cadeira de Astronomia na Universidade Portuguesa, que estava então instalada em Lisboa, mas prejudicou gravemente todas as ciências, mandando sair do reino os seguidores de Moisés que não quiseram converter-se à fé cristã, obrigando assim numerosos membros de uma raça que naquele tempo as cultivavam com mais sucesso a abandonar os seus lares e a ir estabelecer outros em terras onde caridosamente os acolheram».

E Gomes Teixeira, católico fervoroso, disse ainda:

«A esta causa da decadência da filosofia e das ciências em Portugal está ligada outra: a introdução no país, por D. João III, do Tribunal do Santo Ofício. Esta instituição, com os seus fanatismos, com as suas denúncias, com os seus roubos, com as suas prisões, com as suas torturas, com os seus autos de fé, com as suas fogueiras, foi uma mistura de tragédia dolorosa e de baixa comédia, que, durante cerca de duzentos anos, perturbou em Portugal todas as actividades e com elas o progresso geral do país.

Entravam neste caminho infernal o poder civil e o poder eclesiástico, sugestionados talvez pelo ideal da unidade religiosa na Península Ibérica, pela extinção nela do judaísmo, e entrou nele também o povo, que viam os judeus representar um papel preponderante na vida social e económica daqueles tempos.

Homens bons, homens sábios, varões beneméritos da Pátria e mesmo varões beneméritos da religião cristã, foram vítimas da intolerância do terrível tribunal.»

Foi em 1531 que D. João III pediu autorização ao Papa para instalar a Inquisição em Portugal. Essa autorização foi concedida em 1536, mas já em 1534 havia em Portugal um inquisidor que processou Gil Vicente por ter defendido os cristãos-novos, como ele mesmo declarou em carta dirigida a D. João III.

Os autos de fé começaram em Lisboa, em 26 de Setembro de 1540, desde 1541 até 1684 foram queimadas nas fogueiras da Inquisição 1379 pessoas. Na “História de Portugal” de oliveira Martins, vol. II, pág. 191, diz-se que, até 1732, os autos tinham penitenciado mais de 23 000 pessoas e queimado 1454.

Garção-Stockler, no seu livro “Ensaios Históricos sobre a Origem e os Progressos das Matemáticas em Portugal”, escreveu (pág. 151):

«É quase incrível a pressa com que as ciências retrogradaram em Portugal, desde que o Senhor Rei Dom João III, com o piedoso fim de preservar a nação portuguesa do contágio com as inovações religiosas, e princípios heréticos, que infestavam o Norte da Europa, se determinou a adoptar no seu Reino instituições repressivas da livre comunicação de ideias.»

José de Arriaga, no 1º volume da sua “História da Revolução Portuguesa de 1820” (pp. 77 – 78), referindo-se à actuação dos jesuítas, diz-se que eles empregavam todos os esforços para conseguirem (e conseguiram!) que D. João III lhes permitisse os estatutos da Universidade fundada por D. Dinis; o seu plano visava a

«tornar o homem supersticioso, a mistificá-la com a ideia religiosa, a preocupá-lo só com a outra vida e a desprezar inteiramente os bens terrestres, de que os seus mentores se foram apoderando solicitamente.

As faculdades da Universidade ficaram reduzidas apenas a três: Teologia, Cânones e Leis, Medicina.

A matemática, a astronomia, a física, a química, a geologia, finalmente, todas as ciências naturais foram soterradas na mais profunda ignorância pelos da seita negra que as condenavam como inimigas da religião e como ciências perigosas.

Note-se que alguns jesuítas que prestaram grandes serviços à cultura portuguesa (por exemplo, o Padre António Vieira).

No volume 3º da mesma obra (p.79), José de Arriaga, depois de referir que mil e quatrocentos homens foram queimados e mais de três mil pessoas foram exterminadas e desgraçadas e, juntando a isto, as famílias que ficaram desamparadas, afirma que

«a inquisição se pode igualar às maiores calamidades que têm afligido a espécie humana, às maiores calamidades, incêndios, terramotos, devastações, epidemias, guerras e fomes. Serviu, pois, este tribunal para extinguir o entendimento dos portugueses; e serviu este tribunal para nos cobrir de vergonha.»

Em 1821, o governo provisório nascido da Revolução de 1820, acabou com a Inquisição e os lisboetas destruíram o edifício do “santo” tribunal. Na “História da Inquisição” escrita por Iossif Grigulévitch e traduzida para língua portuguesa por José António Torres Rodrigues, pode ler-se, a respeito da resolução do governo provisório, o seguinte (p. 328):

«assim terminou, em Portugal, a actividade dessa criminosa instituição, que durou, com curtos interregnos, pouco menos de três séculos. Ao fazer o balanço da actividade inquisitória, os historiadores da Inquisição costumavam calcular o número de vítimas da mesma. Vejamos, pois, quantas vítimas pesam na consciência da Inquisição portuguesa (…) chegaram até nós 40000 processos do “santo” tribunal. Regra geral, cada uma das “causas” dizia respeito a várias pessoas. Um certo número de processos desapareceu. Então, quantos “hereges” passaram pelas masmorras da Inquisição? Cem mil? Duzentos mil? É pouco provável que alguém jamais o possa dizer com precisão. A investigadora inglesa Mary Brearley adianta os seguintes dados parciais, que só dizem respeito ao Tribunal da Inquisição de Lisboa: de 1536 a 1821, foram queimados vivos na capital portuguesa 355 homens e 221 mulheres; torturados 6005 homens e 4960 mulheres; morreram na prisão 706 homens e 546 mulheres. Total: 12793 pessoas, das quais 5727 mulheres.»

No livro “Terror e Linguagem, um Dicionário da Santa Inquisição” (1999), da autoria do advogado, filólogo e historiador Elias Lipiner (1916 – 1998), diz-se (pág. 39) que os últimos autos de fé tiveram lugar em Lisboa, Coimbra e Évora em 1871.

3- Os que não queriam acabar com o analfabetismo

Como escreveu José de Arriaga, os jesuítas orientaram o seu ensino no sentido de tornarem as pessoas submissas, e os jesuítas não foram os únicos a conduzir o ensino de modo a fomentar a submissão.

Evry Schatzman, no seu livro “La Science Menacée”, afirmou (p. 165):

«Um ensino da ciência que não ensina a pensar não é um ensino da ciência, é um ensino da submissão”.

Naturalmente os que defendem a classe economicamente dominante, defendem um ensino da submissão ou, em alternativa, o não ensino.

Salazar, em Maio de 1935, no discurso proferido na “liga 28 de Maio”, declarou:

«Por vezes reclama-se do Governo que mande o povo aprender a ler. Para ler o quê? A educação moral que se impõe pela selecção da leitura é para encher o espírito de conhecimentos úteis. (…) Considero mais um mal que um bem ensinar o povo a ler sem preparação moral» (vol. II de “O Ensino Primário” de J. Salvado Sampaio, p. 47).

Num “Parecer da Câmara Corporativa”, pergunta-se «se valerá a pena ensinar o povo a ler mesmo contra sua vontade.» (idem, p. 49).

Salazar defendia que ler, escrever e contar é suficiente para a maioria dos portugueses.

O jornalista Costa Brochado, no jornal situacionista “A Verdade”, declarou que tínhamos universidades a mais (nessa altura havia somente três)!

Numa entrevista concedida a António Ferro, em 1933, Salazar declarou:

«Considero (…) mais urgente a constituição de vastas elites do que ensinar o povo a ler. È que os grandes problemas nacionais têm de ser resolvidos, não pelo povo, mas pelas elites enquadrando as massas.» (!!!)

O escritor e historiador João Ameal escreveu em 1929:

«Portugal não necessita de escolas (…) Ensinar o povo a ler é corromper o atavismo da raça.».

Alfredo Pimenta pronunciou-se contra os republicanos que proclamavam que «abrir uma escola é fechar uma cadeia», declarando no jornal “A Voz” que «abrir uma escola é abrir dez cadeias».

Em 1932, Alfredo Pimenta afirmou:

«Ensinar o povo português a ler e a escrever, para tomar conhecimento das doutrinas corrosivas de planfetários sem escrúpulos, ou das facécias malcheirosas que, no seu beco escuro, vomita todos os dias qualquer garoto da vida airada, ou das mentiras criminosas de foliculários políticos – é inadmissível. Logo, concluo eu: para a péssima educação que possui e para a natureza da educação que lhe vão dar – o povo português já sabe demais.»

Em 1927, a escritora Virgínia de Castro e Almeida, considerando que então existiam em Portugal 75% de analfabetos, dizia no jornal “O Século” que

«A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa reside nesses 75 por cento de analfabetos.»

Aludindo aos rurais que aprenderam as primeiras letras, a escritora perguntou e respondeu:

«Que vantagens foram buscar à escola? Nenhumas. Nada ganharam. Perderam tudo. Felizes os que esquecem as letras e voltam à enxada.»

Não se pode naturalmente dizer que são os ignorantes que defendem o analfabetismo, mas pode naturalmente dizer-se que são os reaccionários que defendem o ensino da submissão e o não ensino.

Na sua “História do Ensino em Portugal”, pág. 440, Rómulo de Carvalho escreveu:

«a opinião violenta de que o povo não devia ter acesso ao ensino era comum a muitos pensadores do século XVIII, mesmo entre aqueles que arvoraram estandartes rebeldes contra a sociedade em que viviam. É impressionante saber que Voltaire também pensava assim. “Haverá sempre e é indispensável à felicidade dos Estados que haja sempre miseráveis ignorantes”; é tradução de uma frase escrita por Voltaire, citada por Adolfo Coelho, em “Para a História da Instrução Popular”, Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Gulbenkian, Lisboa, 1973, p. 141.»

No livro acima indicado de Adolfo Coelho, pág. 143, refere-se uma memória, escrita em 1764, de um lugar – tenente geral do senescalado de Toulon dirigida ao procurador-geral da província, onde se diz que:

«Numa nação livre, em que não é permitido ter escravos, as riquezas mais certas consistem em poder dispor de uma multidão de pobres laboriosos; é uma fonte inexaurível para as armadas e os exércitos. Para tornar feliz a sociedade, é necessário que grande número dos seus membros sejam ignorantes e pobres.»

No 2º volume da sua obra, “O Ensino Primário”, J. Salvado Sampaio conta que Salazar, em discurso proferido em 12 de Maio de 1935, mostra a sua preocupação sobre o que o povo deve ler. Segundo Mussolini, que ele considera «um dos homens de visão mais larga sobre a civilização de hoje», o ruralismo que mostrou «como o domínio da cidade é contrário à economia, à saúde e à sociedade

Salazar conta ainda que

«Uma jornalista sueca que, há pouco, visitou Portugal, exclamou, ao saber que íamos ensinar o nosso povo a ler: Na Suécia foi isso que fez o nosso povo infeliz.»

Em 13 de Maio de 1935, quando Eusébio Tamagnini de Matos da Encarnação estava encarregado da pasta da Instrução Pública, o Conselho de Ministros publicou o decreto-lei nº 25 317, em que se determina que os funcionários ou empregados civis e militares que tenham revelado pu revelem espírito de oposição contrário aos princípios fundamentais da Constituição ou que não dêem garantia de cooperar na realização dos fins superiores do Estado, sejam aposentados ou reformados, se a isso tiverem direito, ou demitidos em caso contrário.

(Note-se que a Constituição que aqui se refere é a Constituição de 1933, aprovada por referendo em que as abstenções foram consideradas como votos de aprovação (!!!).

Este decreto-lei foi imediatamente utilizado pelo governo fascista de Salazar para expulsar do ensino os professores universitários Sílvio Lima, Aurélio Quintanilha, Manuel Rodrigues Lapa, Abel Salazar e o general Norton de Matos (então professor no Instituto Superior Técnico) e os professores primários Jaime Carvalhão Duarte, Bernardino José da Costa Amaral e Manuel da Silva.

A nota oficiosa de Maio de 1935, em que o Conselho de Ministros manda afastar do serviço 33 funcionários civis e militares ao abrigo do tal decreto-lei, contém um apelo aos pais de família para que denunciem os professores que, na formação mental e moral das novas gerações, não cumprirem o tal decreto-lei.

Na pág. 60 do vol. II de “O Ensino Primário” de J. Salvado Sampaio, pode ler-se o seguinte:

«Esta pressão sobre o professorado mostra por um lado, a oposição da classe ao regime e, por outro, que teria havido muita adesão involuntária e superficial, de que muitos não professores se teriam libertado por não terem sofrido idênticas pressões

O culto do Chefe explica o título do artigo: «Devemos a Salazar obediência Total, pronta e perfeita» (!!!) (“Escola Primária”, nº 286, de 18 de Abril de 1940).

Os alunos devem tornar-se discípulos de Salazar (!!!)

«Apaixonemo-nos pelas ideias de Salazar sobre Deus, sobre a Pátria, sobre a Família, sobre a ordem, sobre a economia, sobre a paz, sobre o trabalho e sobre a vida.» (“Escola Primária”, nº 287, de 25 de Abril de 1940).

No relatório que precede o articulado do Decreto nº 30 951, de 10 de Dezembro de 1940, consigna-se o seguinte (pp. 60 – 61):

«O professor primário deve, em geral, ser um apóstolo; e particularmente é preciso que oseja, quando é chamado a colaborar, através da escola e fora dela, em alguma obra social ou mesmo política que exprima o idealismo fundamental do Estado Novo (!!!).»

4- Organismos de Educação Popular (Informações colhidas em “O Ensino Primário” de J. Salvado Sampaio)

Em 1907, foi criada a “Liga Nacional de Instrução”, que se propôs realizar, entre outras actividades, as seguintes (vol. 1, pág. 168):

- promover o melhoramento da instrução nacional em todos os ramos, principalmente no primário e popular;

- fazer o cadastro do analfabetismo em Portugal;

- conseguir subsídios de roupa e alimentos às crianças pobres, para que possam frequentar a escola;

- conseguir a formação de bons professores primários, para as escolas fundadas ou auxiliadas pela Liga;

- criar escolas primárias modelo para os dois sexos;

- promover uma transformação radical da actual escola primária;

- promover o desenvolvimento da educação física nas escolas;

- promover a criação, junto das escolas, de cantinas escolares, caixas escolares e caixas económicas;

- fornecer aos núcleos escolares material pedagógico;

- promover a fundação de escolas móveis de instrução primária, de ensino agrícola e de educação geral e doméstica.

(“Liga Nacional de Instrução, Arquivo dos seus trabalhos”, Lisboa, 1ª série, Janeiro a Março de 1915).

Além destes objectivos, procura ainda fomentar o desenvolvimento de Universidades Populares, a criação de laboratórios e museus destinados à educação popular e de bibliotecas populares.

A actividade da Liga abrangeu, em 1915, a promoção de palestras educativas, subsídio de cursos nocturnos para aperfeiçoamento dos que frequentam cursos de alfabetização. Bernardino Machado era, nesta altura, presidente da direcção da Liga. Em Janeiro de 1915, foi publicado o primeiro número de “Liga Nacional de Instrução, Arquivo dos seus trabalhos”.

Em 14 de Junho ( ou Janeiro (?)) de 1914, é fundada em Lisboa, a “Liga popular contra o Analfabetismo”. Teve um subsídio ministerial para instalar seis escolas móveis e subsidiar sete centros escolares. A “Liga Popular contra o analfabetismo” instituiu seis cursos nocturnos para adultos analfabetos e um curso diurno para crianças pobres. O subsídio foi retirado em 1915-1916 e novamente concedido em 1916-1917.

J. Salvado Sampaio faz uma referência à”Academia de Estudos Livres de Lisboa”, em 1914, cuja finalidade era promover a educação popular, faz outra referência à Sociedade Promotora de Escolas”, responsável pelo funcionamento da Escola oficina nº 1, Lisboa.

A “Academia de Estudos Livres”, tanto na revista “A Mocidade”, como na revista “Anais da Academia de Estudos Livres” (a partir de meados de Outubro de 1910), intitula-se Universidade Popular, pois a sua obra assemelha-se às destas instituições.

A academia edita, além de “A Mocidade” e os “Anais”, 14 obras, entre as quais “Ensino Inicial de Leitura” (de Augusto Coelho), “Tricentenário da Publicação D. Quixote” (de Teófilo Braga), “Spinoza”(também de Teófilo Braga) e livros com a descrição de monumentos e relatos de excursões.

Em 17 de Outubro de 1913, a Academia de Estudos Livres foi louvada pelo ministro da Instrução Pública.

Entre outras instituições interessadas na difusão da cultura das massas populares destaca-se a Universidade Popular Portuguesa, sediada em Lisboa e considerada de utilidade nacional, pelo decreto nº 5781, de 10 de Maio de 1919.

Em 1922, a Universidade Popular Portuguesa compreendia seis secções, algumas das quais associadas a várias instituições:

I – Central, instalada em A Padaria do Povo, em Lisboa;

II – Junto da Associação de Classe dos caixeiros de Lisboa;

III – Instalada no Barreiro;

IV – Associada à Associação do Pessoal do Arsenal do Exército, de Lisboa;

V – Dirigida às classes metalúrgicas

VI – Ao serviço da classe dos chapeleiros.

Assim, a Universidade Popular orienta-se para a promoção das classes trabalhadoras. Possui uma revista mensal, “Educação Popular”, que inicia a sua publicação em 1921, organiza concertos sinfónicos para as classes trabalhadoras.

Em Setúbal, existiu também uma Universidade Popular, onde Bento Caraça realizou a conferência intitulada “As Universidades Populares e a Cultura”, conferência em que Bento Caraça identificou os conceitos de cultura e de liberdade - «sem cultura não pode haver liberdade e sem liberdade não pode haver cultura».

Bento Caraça declarou também:

«Deve ainda a cultura tender ao desenvolvimento do espírito de solidariedade. Não apenas solidariedade de cada um com os da sua família, da sua aldeia ou da sua pátria – solidariedade com todos os outros homens de todo o mundo»

Dada a ligação do conceito de cultura e do espírito de solidariedade, Bento Caraça, militante da cultura, foi também um militante da paz entre os povos; foi um internacionalista, no mais nobre sentido da palavra, foi um defensor da formação da pátria humana.

No livro de Salvado Sampaio (já citado), vol. 1, pp. 173 -174, regista-se que David Ferreira, autor de 3 artigos sobre a Universidade Livre de Lisboa, publicados no “Diário de Lisboa”, é de opinião que não há em Portugal uma verdadeira distinção entre Universidade Livre e Universidade Popular. Jaime Cortesão, no órgão da Renascença Portuguesa, intitulado “A Vida portuguesa” (Porto, 15 de Dezembro de 1912) precisa os conceitos de Universidade Popular e de Universidade Livre.

«No estrangeiro, as universidades livres dirigem-se a um público bem preparado que tem por fim o ensino superior, enquanto as universidades populares se orientam para um público mais vasto, pretendendo realizar uma obra de acção social e nacional.»

Na sua opinião, em Portugal não houve universidades livres, com as características apontadas.

Na pág. 175 do vol. I acima citado, informa-se que Universidade Livre de Lisboa foi fundada em 28 de Janeiro de 1912, no salão do Coliseu da Rua da Palma, conforme pode ler-se no artigo de David Ferreira, no Diário de Lisboa de 18 de Novembro de 1969. A sessão de 28 de Janeiro de 1912 foi presidida pelo Presidente da República, Manuel de Arriaga. Para o orador dessa sessão, Queirós Veloso,

«O ensino na Universidade Livre obedece a dois processos: O das conferências de assunto isolado, formando um todo completo e o dos cursos seguidos em séries de conferências sobre a mesma questão exposta gradualmente.»

Posição idêntica é referida para a Universidade Popular do Porto, que faculta cursos públicos, de exposição de ideias gerais, em salão para 400 pessoas e cursos especiais, para 15 ou 20 alunos (“A Vida Portuguesa”, nº 23, Porto, 1 de Março de 1914).

É possível que a Universidade Popular do Porto, de então, tenha deixado de existir, visto que a actual Universidade Popular do Porto foi fundada já depois do 25 de Abril, sendo a escritura da sua constituição datada de 25 de Junho de 1979.

José Morgado

(Centro de Matemática da Universidade do Porto)

sábado, 15 de dezembro de 2007

Carta do Vice - Reitor da Universidade do Porto ao Brigadeiro Vasco Lourenço

Carta do Vice – Reitor da Universidade do Porto ao Brigadeiro Vasco Lourenço

Ex. mo Senhor

BRIGADEIRO VASCO LOURENÇO

Dig.mo Comandante da Região Militar

De Lisboa – Quartel General

LISBOA

Porto, 13 de Maio de 1976

Ao falar, durante uma visita à Escola Prática de Administração Militar, recentemente realizada, perguntou V. Ex.ª. :

«Como é possível, neste momento, contrariamente ao estabelecido na Constituição Portuguesa, o fascismo ter voz neste país, através dos mais variados meios de comunicação social, que não deixam de aparecer à luz do dia, com uma impunidade escandalosa mercê da quase passividade das entidades a quem pertence actuar? Sim, como foi possível terem-se cometido tantos erros que provocaram a actual situação?

(O Primeiro de Janeiro, 8 – 5 – 1976).

Realmente, Senhor Comandante da Região Militar de Lisboa e Senhor Conselheiro da Revolução, o fascismo continua a ter voz neste país, mas não apenas através dos mais variados meios de comunicação social.

Tem voz através das organizações terroristas que continuam agindo com a maior impunidade; tem voz através de certas organizações partidárias que continuam a desestabilizar o sistema, apelando, não contra o fascismo, mas contra o comunismo procurando atribuir as conquistas revolucionárias autenticamente nacionais à preocupação de defender interesses de estados socialistas, ao mesmo tempo que pretender fazer passar por autenticamente nacionais os interesses de estados capitalistas; tem voz através de certas organizações que se apresentam como não partidárias, mas se pronunciam conforme os desejos de Kissinger, contra a participação de comunistas no governo português, chegando a ameaçar com desordens e até com aquilo a que chamam a prática de justiça por suas próprias mãos, caso certas reivindicações, contrárias à Reforma Agrária e à lei do arrendamento rural, não sejam satisfeitas pelo governo; tem voz através de comícios onde se ataca a acção e até a honorabilidade pessoal do Ministro da Agricultura, Eng.º Lopes Cardoso, destacado dirigente do Partido Socialista; tem voz através de desordeiros organizados que agridem os participantes de festas de confraternização de antifascistas, como por exemplo, ainda há dias fizeram em Murça contra militantes do Partido Socialista; tem voz através de campanhas sistemáticas contra o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Major Melo Antunes, campanhas que visam pôr em causa a política externa de Portugal, como nação livre e independente; tem voz através das campanhas de boatos, que encontram eco na imprensa estatizada, contra os novos países de expressão portuguesa, a fim de diminuir uma das maiores conquistas revolucionárias – a descolonização – por meio da qual estamos de facto dando “novos mundos ao mundo”, continuando assim, em termos modernos, aquilo que no passado nos fez realmente grandes; tem voz através de todas as tentativas de divisão dos portugueses em retornados e não retornados, em civis e militares, em portugueses do norte e portugueses do sul e as tentativas de divisão dos militares revolucionários em gonçalvistas e antigonçalvistas, quando é certo que a única divisão a ter em conta é a divisão entre os exploradores e os explorados, e a sua expressão no plano político que é ainda, neste momento, a divisão entre fascistas e antifascistas.

Através de tudo isto, Senhor Comandante, o fascismo tem voz neste país; e tem voz, unicamente porque os antifascistas parece não terem tomado ainda consciência do perigo que o fascismo representa, parece confundir derrota do fascismo no 25 de Abril com destruição do fascismo, parece menosprezarem a capacidade de manobra do fascismo, a capacidade de se disfarçar e de se reagrupar, a capacidade de se ligar a interesses imperialistas contra a sua pátria. Os antifascistas, na realidade, não compreenderam que, sem destruir as bases económicas do fascismo, não se destrói o fascismo e alguns já “decretaram” que a revolução acabou quando ela mal começou.

Mas não são as vias apontadas as únicas que permitem a acção dos fascistas contra a democracia.

Uma via importante de acção é a via judicial. A utilização do aparelho judicial montado durante quase meio século de fascismo, e que continua praticamente intacto, é um processo a que estão recorrendo os fascistas e aparentados, a que estão recorrendo pessoas que, de algum modo, colaboraram na repressão fascista. É o caso, por exemplo, da acção movida contra a Universidade do Porto pelo advogado Sr. Dr. Fernando de Matos.

Este Senhor advogado havia sido encarregado pelo último dos Reitores da Universidade do Porto, durante o regime fascista, de instaurar processos disciplinares contra estudantes antifascistas.

De facto, nesta Universidade, e para honra da juventude estudantil, estava em 1973 bem acesa a luta contra o fascismo e contra a guerra colonial, a luta contra o autoritarismo e contra as estruturas arcaicas que serviam o fascismo.

A fim de tentar suster a onda de revolta estudantil, já não era suficiente, no opinião dos senhores que então dirigiam ou pensavam dirigir os destinos da Universidade, o recurso aos Tribunais, por os considerarem demasiado morosos e demasiado sensíveis aos ventos de mudança. Na opinião desses senhores, legítimos herdeiros dos bons velhos tempos inquisitoriais, era preciso instalar, na própria Universidade uma máquina repressiva eficaz, de funcionamento contínuo, que obedecesse cegamente à voz do dono Marcelo Caetano, quer a ordem dele emanada se fizesse ouvir por intermédio do seu principal porta – voz para assuntos educacionais – o ministro Veiga Simão – quer por intermédio do seu principal guarda-costas – o polícia Silva Pais.

Além disso, era preciso que essa máquina funcionasse sem a publicidade, por vezes comprometedora dos Tribunais que, mesmo quando fascistas, sempre são mais palavrosos, menos reservados que os discretíssimos Tribunais do Santo Ofício, de tão saudosa memória.

Essa máquina repressiva foi finalmente posta a funcionar com a ajuda eficiente e dedicada do advogado Sr. Dr. Fernando de Matos e do seu secretário, Sr. Delfim de Barros Gomes que, no dizer do seu patrão, expresso na queixa contra a Universidade apresentada ao Ex.mo Senhor Corregedor do Cível,

«confirmou as suas já conhecidas qualidades de integridade, honestidade, zelo, competência e lealdade.»

E é de justiça dizer-se que a máquina funcionou repressivamente bem , dada talvez a possível adesão mental e sentimental do Sr. Advogado às directrizes fascistas relativas à repressão.

Ora propondo prorrogações de suspensões de alunos por mais de 90 dias, com o argumento de que tal era necessário para prosseguir a instrução dos processos, ou propondo penas de suspensão de até um ano, não há dúvida de que o Senhor advogado se esforçou por cumprir a tarefa para que foi contratado.

É um facto que a Universidade pagou bem esses serviços, pagou bem a comodidade de ter ali à mão, pronta a entrar em acção, uma máquina de intimidação, repressiva, eficiente, com roupagem legalista.

Mas é claro que, essa máquina, para funcionar repressivamente bem, precisava de ser lubrificada e, graças ao Reitor e ao Ministro de então, essa máquina foi bem lubrificada. Assim, pelos serviços prestados desde 10 de Maio de 1973 até final desse mesmo ano, a Universidade pagou ao Sr. advogado a quantia de 326 723$50, assim distribuídos:

Instrutor (Fernando Matos) ……….260 000$00

Escrivão (Delfim Barros Gomes) … 65 000$00

Quer dizer, o salário do Sr. advogado foi, nesse período de oito meses, superior ao dobro do vencimento de um professor catedrático e o vencimento do seu secretário foi superior ao vencimento de um assistente.

Deste modo ficou claramente traduzido em numerário aquilo que o ministro do governo fascista, Veiga Simão, e a direcção da Universidade pensavam sobre o valor relativo da função docente e da função repressiva.

Mas acontece, Senhor Comandante da Região Militar de Lisboa e Senhor Conselheiro da Revolução, que esta verba de 326 723$50 não podia naturalmente ser entregue por Veiga Simão ao Reitor da Universidade a título de «pagamento de serviços prestados» ou algo semelhante.

Era preciso disfarçá-la, para que a verba aparecesse ligada a uma actividade normal de uma Universidade normal e não, como na realidade era, ligada a uma actividade suja, a uma actividade vergonhosa para qualquer instituição de ensino em qualquer lugar e em qualquer tempo – perseguição aos estudantes.

Assim, em 19 – 12 – 73, o Reitor pede por ofício ao Sr. advogado que, A BEM DA NAÇÃO, lhe mande a conta.

O Sr. advogado não fez esperar o Reitor; responde logo em 22 – 12 -73, mandando aquela conta e declarando admirador atento e grato, que os seus honorários foram

«fixados muito aquém quer dos montantes sugeridos globalmente quer dos resultados apurados por critérios parcelares»,

como concluiu após consultar, segundo diz, colegas do Porto e de Lisboa e ainda um “ilustre desembargador”, de quem não revela o nome.

Em 26 -12 -73, também A BEM DA NAÇÃO, o Reitor pede ao Director-Geral do Ensino Superior se digne promover seja dado conhecimento daquela conta ao Secretário de Estado da Instrução e Cultura.

Em 18 – 1 – 74, o ministro do governo fascista, Veiga Simão, exarou um despacho concedendo

«a importância de 350 contos a favor do Reitor da Universidade do Porto para suportar encargos com actividades no âmbito da expansão do Ensino Superior.»

E aqui está, Senhor Comandante, o disfarce arquitectado para pagar ao Sr. advogado os serviços prestados na perseguição aos estudantes antifascistas: O pagamento foi feito como se a actividade repressiva do Sr. advogado fosse, afinal, uma actividade de expansão do Ensino Superior.

Em 24 – 1 – 74, o chefe de gabinete de Veiga Simão esclarece aquele despacho, comunicando ao Reitor, ainda a BEM NAÇÃO, que o Ministro, por aquele despacho, concedeu o subsídio de 350 contos

«para pagamento ao advogado dessa Universidade».

O subdirector - Geral não deixa também de oficiar, igualmente A BEM DA NAÇÃO; responde ao ofício em que o Reitor pedia a verba para pagar ao advogado, remetendo-lhe cópia do tal despacho de Veiga Simão, de 18 – 1 – 74.

Ora, em nosso entender, Senhor Comandante, em nome de um mínimo de moralidade, é preciso para o Estado o dinheiro que o ex – ministro, o seu chefe de gabinete e o subdirector – geral desviaram da expansão do Ensino Superior para a repressão aos estudantes do Ensino Superior.

Em nosso entender, e proporcionalmente às responsabilidades dos respectivos cargos, o ex – ministro Veiga Simão, o seu chefe de gabinete e o subdirector – geral precisam ser obrigados a restituir aos cofres do Estado, quantia pelo menos igual àquela que foi utilizada contra estudantes, quando devia ser utilizada para expandir o Ensino Superior.

É preciso ainda averiguar, no Ministério da Educação, se, no tempo de Veiga Simão, a rubrica “expansão do ensino superior” era ou não um código que significava repressão aos estudantes antifascistas

Quanto à acção agora movida pelo Sr. advogado Fernando de Matos, contra a Universidade do Porto, por não lhe ter pago os serviços que prestou desde Janeiro de 1974 até ao 25 de Abril, entendemos que NADA HÁ A PAGAR.

A Universidade após o 25 de Abril, a Universidade do Estado democrático nada tem a pagar aos perseguidores de estudantes, mesmo que tenham sido, contratados pelo último dos Reitores de uma Universidade do estado fascista.

Já é um grande favor que os universitários prestam a esses senhores, se conseguirem esquecer as tarefas repressivas a que se dedicaram durante vários meses, tarefas de colaboração, voluntária ou não, com a PIDE.

Os universitários podem esquecer, mas o Conselho da Revolução não pode esquecer aqueles que colaboraram com a PIDE e ainda por cima têm o atrevimento de vir exigir judicialmente

E que pagamento!

Pelos processos que instaurou contra estudantes antifascistas, no período de Janeiro de 1974 a 25 de Abril do mesmo ano, pede aquele Sr. advogado a quantia de 257 284$50, assim distribuídos:

Instrutor (Fernando de Matos) ……….200 000$00

Escrivão (Delfim Barros Gomes) ……….50 000$00

Despesas ………………………………….………..7 284$50

Total ……………………………………………….257 284$50

Isto significa que, naquele período de quatro meses, os vencimentos do Sr. advogado subiram, passando a ser superiores ao de três professores catedráticos; os vencimentos de seu secretário subiram também, passando a ser superiores aos de um professor auxiliar.

Em nossa opinião, Senhor Comandante, esta acção é um insulto à Universidade, um insulto à própria revolução.

Nós, democratas, não podemos consentir que a Revolução se deixe enredar em processos como este. Qualquer contemporização com os fascistas conduz a deterioração da Revolução.

Por isso, à pergunta de V. Ex.ª de como é possível o fascismo ter voz neste país, nós só podemos dizer que outra coisa não é de esperar, quando se põem em liberdade os pides e os sabotadores da economia nacional, sem qualquer espécie de julgamento público; quando se deixam fugir da prisão dezenas e dezenas de pides; quando pessoas como Valadão podem escarnecer das leis e dos tribunais portugueses viajando para o Brasil, sem que os responsáveis sejam chamados a prestar contas dos seus actos; quando se reintegram juízes dos Tribunais Plenários sem que eles respondam perante o país pelas condenações que sentenciaram contra combatentes antifascistas; quando se deixa de agir contra os bombistas, salteadores e incendiários; quando se levam aos tribunais, por pretensos delitos de imprensa, antifascistas como o escritor José Cardoso Pires e se não processam os colaboradores dos antigos jornais fascistas Diário da Manhã, Voz, Época, etc; quando nem sequer se dá conhecimento ao povo de quem são os jornalistas que estavam ligados à PIDE; quando se permitem artimanhas “legais” para acarear torcionários da PIDE com antifascistas por eles torturados, como se uns e outros estivessem no mesmo plano; quando se reintegram ex – ministros fascistas como professores universitários, ainda antes de reintegrar professores que foram expulsos pelo fascismo.

Quando se permite que coisas destas aconteçam, nada é de estranhar.

Pensamos que, apesar de tudo isto, ainda é tempo de o Conselho da Revolução salvar a Revolução.

Promovendo a unidade de acção de todos os antifascistas, recuperando inclusivamente alguns que se encontram, neste momento e contra a sua própria vontade, marginalizados do processo revolucionário, defendendo a formação de um governo de esquerda, de um governo que dê ao povo garantias de respeitar a Constituição da República, metendo na ordem os fascistas e seus aliados, lutando pela independência nacional e mantendo boas relações com todos os povos, especialmente com os povos dos novos países de expressão portuguesa, o Conselho da Revolução conquistará o apoio activo do Povo e salvará a Revolução.

Porque pensamos que ainda é tempo de salvar a Revolução, pelo respeito que temos pelo Conselho da Revolução e pela consideração que nos merecem as palavras desassombradas de V. Ex.ª, proferidas na visita à Escola Prática de Administração Militar e em várias outras oportunidades, dirigimos a V. Ex.ª esta carta que, caso V. Ex.ª a isso se não oponha, tornaremos pública dentro, digamos, duma semana.

Com os melhores cumprimentos do cidadão e do Vice – Reitor da Universidade processada,

José Morgado

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

A Propósito dos Conceitos Fundamentais da Matemática de Bento de Jesus Caraça

A propósito dos conceitos Fundamentais da Matemática de Bento de Jesus Caraça

1 – Identificação dos conceitos de Cultura e Liberdade

Bento de Jesus Caraça foi um Professor invulgar, grande educador, trabalhador incansável pela cultura popular, lutador pela conquista das Liberdades Democráticas, pela Paz, pela Independência Nacional e pela Cooperação entre os Povos.

Foi fundador da Biblioteca Cosmos e seu director desde a sua fundação, em 1941, até à sua morte, em 1948. Pela Biblioteca Cosmos foram publicados perto de centena e meia de volumes, incluindo dois dos três volumes da obra de Bento Caraça intitulada Conceitos Fundamentais da Matemática, o primeiro volume no próprio ano da fundação e o segundo no ano seguinte. O terceiro volume, juntamente com novas edições dos dois primeiros, só pôde ser publicado depois do falecimento do Autor.

A orientação geral que Bento Caraça adoptou, na direcção da Biblioteca Cosmos e noutros trabalhos seus de divulgação, foi naturalmente a resultante das suas próprias ideias sobre o que é a cultura e sobre quem deve beneficiar da cultura.

A este respeito, vejamos o que Bento Caraça nos diz:

«Dar ao maior número o máximo possível de cultura geral, tornar acessível a todos aquilo que as condições materiais de vida e as necessidades profissionais da especialização tornam sempre difícil e, por vezes, mesmo impossível adquirir – uma visão geral do mundo, mundo físico e mundo social, da sua construção, da sua vida e dos seus problemas.»

Foi com estas palavras, escritas no prefácio do 1º volume da Biblioteca Cosmos – O Homem e o Livro, da autoria de M. Iline – que Bento Caraça respondeu à pergunta que ele próprio formulou: «A que vem a Biblioteca Cosmos?»

«Dar ao maior número o máximo possível de cultura geral» foi sempre uma preocupação de Bento Caraça, preocupação bem transparente em vários trabalhos seus.

Assim, por exemplo, na conferência realizada na Universidade Popular de Setúbal, intitulada “As Universidades Populares e a Cultura”, Bento Caraça defendeu que se deve promover:

«A cultura de todos e isso é possível, porque ela não é inacessível à massa; o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante.»

E acrescentou:

«Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade – o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais.»

Foi nesta memorável conferência que Bento Caraça proclamou:

«Assim, cultura e liberdade identificam-se – sem cultura não pode haver liberdade e sem liberdade não pode haver cultura. Deve ainda a cultura tender ao desenvolvimento do espírito de solidariedade. Não apenas solidariedade de cada um com os da sua família, da sua aldeia ou da sua pátria – solidariedade do homem com todos os outros homens de todo o mundo

E Bento Caraça esclareceu:

«Este internacionalismo não significa não significa de modo nenhum a destruição da pátria, antes pelo contrário, implica a sua consolidação e o alargamento a todas as nacionalidades – a formação de pátria humana. O coração do homem é grande e nele cabe bem o amor da sua nacionalidade ao lado do amor de toda a humanidade.»

Na conferência intitulada “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso Tempo” e realizada na União Cultural “Mocidade Livre”, em 25 de Maio de 1933 (dois anos de dois meses depois da conferência referida anteriormente), Bento Caraça afirmou:

«A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico, significa, numa palavra, a conquista da liberdade.

E para atingir esse cume elevado, acessível a todo o homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se. A pureza que se respira no alto compensa bem da fadiga da ladeira.»

E mais adiante, sublinhou:

«(…) o que não deve nem pode ser monopólio de uma elite é a cultura; essa tem reivindicar-se para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria, ditando a todo o momento a tonalidade geral da orientação às elites parciais.

Só deste modo poderá levar-se a bom termo a realização daquela tarefa essencial que atrás vimos ser o problema central posto às gerações de hoje – despertar a alma colectiva das massas.»

2. Abolição de Privilégios Perante a Cultura

Em 10 de Abril de 1935 na conferência realizada na Sociedade de Estudos Pedagógicos e intitulada Escola Única, Bento Caraça declarou:

«A concepção que orienta a Escola Única é (…) a da abolição de privilégios perante a cultura – privilégios de sexo, privilégios de dinheiro, privilégios de crenças. A natureza humana é uma e todo o ser humano é, por consequência, portador dos mesmos direitos; a todos deve, portanto, ser proporcionada a completa aquisição dos conhecimentos que lhe permitam viver dignamente a vida, conforme as suas capacidades – uma só condição, uma só dignidade, uma só escola.

Caracterizado, assim, o sistema escolar que estamos estudando – igualdade de todos perante a cultura – vejamos agora quais as condições da sua realização.

(…)

Assim, à causa da divisão resultante dosa sexos, opor-se-á a coeducação; à causa de divisão resultante das crenças religiosas dos pais, opor-se-á o laicismo; ao motivo de privilégio que representa a desigualdade de situação económica, contrapor-se-á a gratuidade do ensino em todos os graus.»

E Bento Caraça acrescentou quase no fim da conferência:

«Dos confins da história caminham, ao encontro do homem de hoje, aquelas correntes fecundantes – laicismo, interesse colectivo, democratização integral da cultura – que hão-de fazer dele o homem novo, criador da cidade nova.»

Ocupou-se também da cultura em outros trabalhos, especialmente nas conferências “A Arte e a Cultura Popular”, realizada na Universidade Popular Portuguesa, em 1936, “Algumas Reflexões sobre a Arte”, cujo texto foi publicado em 1945 nos números 941 e 942 da revista Seara Nova; Aspectos do Problema Cultural Português, na sessão de 30 de Novembro de 1946, promovida pelo Movimento de Unidade Democrática no Salão de “A Voz do Operário”.

3. Os Militantes da Anti-cultura, Militantes da Opressão

Bento Caraça foi militante da cultura, uma militante da liberdade, enquanto os percursores e apoiantes de Salazar forma militantes da anti-cultura, militantes da opressão.

Em 1927, a escritora Virgínia de Castro e Almeida, numa altura em que havia 75% de analfabetos em Portugal, escreveu no jornal O Século que «A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa reside nesses 75 por cento de analfabetos»; e, à pergunta que ela própria faz em alusão aos rurais que aprenderam as primeiras letras, «Que vantagens foram buscar à escola?», ela mesma respondeu: «Nenhumas. Nada ganharam. Perderam tudo. Felizes os que esquecem as letras e voltam à enseada». O escritor e historiador João Ameal escreveu: «Portugal não precisa de escolas» (…) «Ensinar a ler é corromper o atavismo da raça». O escritor José de Sá Pereira Coutinho, Conde de Aurora, exclamava: «Felizes aqueles que não sabem ler!». Alfredo Pimenta, em oposição aos republicanos que diziam «abrir uma escola era fechar uma cadeia», declarava que «abrir uma escola era abrir dez cadeias», etc.

O próprio Salazar, numa entrevista a António Ferro, em 1933, afirmou: «Considero (…) mais urgente a constituição de vastas elites do que ensinar o povo a ler. É que os grandes problemas nacionais têm de ser resolvidos, não pelo povo, mas pelas elites enquadrando as massas»

Por isso as Escolas Normais, escolas de preparação de professores primários foram encerradas em 1936 e só reabertas em 1942, numa época em que a taxa de analfabetos era bastante superior a 50%. As escolas oficiais infantis foram extintas em 1937, de modo que o ensino ário

Foram criados os chamados Postos de ensino, cujos “mestres” eram designados por “regentes escolares” e iriam ser escolhidos «entre pessoas a quem não se exigiria qualquer habilitação, mas apenas a comprovação de possuírem “a necessária idoneidade moral e intelectual”. Assim se procedeu, de facto. (ver História do Ensino em Portugal, de Rómulo de Carvalho, pp. 736 – 737). Mais tarde, em consequência dos abusos cometidos, passou-se a exigir um exame de aptidão aos candidatos e para não se inquirir demasiadamente da competência desses candidatos o exame de aptidão constava de três provas escritas (Português, Aritmética e o restante exigível no ensino primário) de meia hora cada uma, e de uma prova oral de 10 minutos.

O ensino primário que tinha a duração de 4 anos, passou a ter a duração de três anos.

A perseguição aos funcionários públicos, especialmente professores, foi intensificada após a publicação do Dec. Lei nº 25317 de 13 de Maio de 1935, a fim de dar uma aparência de legalidade a tal perseguição. Logo após a publicação, foram expulsos 33 funcionários públicos civis e militares, entre os quais os professores universitários Abel Salazar, Aurélio Quintanilha, Manuel Rodrigues Lapa, Sílvio Lima e Norton de Matos (então professor no Instituto Superior Técnico) e os professores do ensino primário, Jaime Carvalhão Duarte e Manuel da Silva

Este decreto foi largamente utilizado contra professores de todos os graus de ensino. Dezenas e dezenas de docentes foram atingidos; só de uma vez, em Junho de 1947, foram expulsos 21 professores e assistentes universitários.

Em 7 de Outubro de 1946 foram expulsos os professores catedráticos Bento de Jesus Caraça, do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, e Mário de Azevedo Gomes, do Instituto Superior de Agronomia.

A demissão de Bento Caraça e a prisão sofrida alguma influência tiveram na sua morte prematura …

4 – A Obra Científica e de Divulgação Cultural de Bento Caraça

É um facto bem conhecido que, a partir de meados do século XVI, se agravou o isolamento do nosso País em relação aos outros Países e o isolamento interno de mais portugueses em relação em relação a outros portugueses.

Ora, como o matemático Gomes Teixeira preveniu no seu Elogio Histórico de Daniel Augusto da Silva, lida perante a Academia das Ciências em 2 de Junho de 1918,

«Não há nada mais prejudicial para a ciência de um povo que o seu isolamento no meio da ciência de outros povos. Este isolamento foi quase completo em Portugal na maior parte do século XIX e o motivo principal estava no desconhecimento da nossa língua nos meios científicos estrangeiros.»

A Inquisição e a Companhia de Jesus contribuíram, cada uma a seu modo, para manter, e até aumentar, o isolamento de Portugal em relação à Europa. Como escreveu o historiador Jaime Cortesão, no volume 1º, pp. 97 da sua obra Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid,

«O fanatismo, a intolerância feroz, a superstição em todas as classes, a degradação do culto, pelo amor da ostentação e o gosto de teatro, aumentaram. A Inquisição, que, durante os reinados anteriores dos Braganças, diminuíra de zelo sanguinário, multiplicou de novo as vítimas. Muitos dos melhores engenhos, como António José da Silva, Jacob de Castro Sarmento ou Ribeiro Sanches, quando de origem judaica, mau grado a sua íntima adesão ao sentimento da Pátria Portuguesa, ou arderam na fogueira ou tiveram que expatriar-se

O historiador José Hermano Saraiva, tendo presente a pedagogia praticada nos Colégios dirigidos pela Companhia de Jesus, escreveu na sua História Concisa de Portugal (pp. 197) o seguinte, a respeito da orientação seguida pela Companhia de Jesus:

«O objectivo era o de enraizar dogmas em que sinceramente se acreditava, não o de provocar críticas, porque o resultado das críticas é sempre o fim dos dogmas. O ensino não foi, pois, um treino para pensar, mas um alicerce para crer. E deu resultado, porque os portugueses do século XVII creram muito e pensaram pouco.»

Ora, se o Professor Bento Caraça tivesse podido ler uma afirmação que Evry Schatzman escreveu em 1971, a saber,

«Um ensino da ciência que não ensine a pensar, não é um ensino da ciência, é um ensino da submissão» (La Science Menacée, pp. 165)»,

certamente concordaria com esta afirmação pois ele sempre agiu de acordo com tal ideia.

Perante o isolamento secular, mantido pelas classes economicamente dominantes, perante o atraso que tal isolamento provocou, perante o ensino da submissão praticado por tais classes e agravado pelo fascismo, Bento Caraça não podia ficar indiferente e não ficou. Como professor de Matemática do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, procurou não só estudar e divulgar Matemática, mas colaborou activamente na criação de condições para que outros pudessem investigar e divulgar Matemática.

Assim, além das conferências a que já nos referimos, foram publicadas no volume intitulado Conferências e Outros Escritos as seguintes conferências de Bento Caraça: A Vida e a Obra de Evaristo Galois, Galileu Galilei – Valor científico e moral da sua obra; sob a designação de Outros Escritos, foram publicados os seguintes: A Luta contra a Guerra; O Único Remédio; Crepúsculo da Europa; Crítica Científica – Ciências Físico – Matemáticas; Sobre o livro do Dr. Carrel “O Homem Esse Desconhecido”; Um Dobre a Finados; “A Evolução da Física”, de Albert Einstein e Leopold Infeld; Abel e Galois; “Progresso. História breve de uma ideia”, por Magalhães Vilhena; Humanismo e Humanidade; Galileo e Newton; Romain Rolland; Respostas a uma Crítica; Carta a António Sérgio – crítico; Nota, em guisa de conclusão; Defesa. Contém ainda os eventos relativos à polémica com António Sérgio.

Foi fundador e director da Biblioteca Cosmos, possivelmente a iniciativa de maior influência cultural no nosso País até meados do século XX.

Elaborou e publicou os seguintes trabalhos de Matemática:

Sobre a intervenção do princípio de substituição dos infinitésimos no estabelecimento de algumas fórmulas fundamentais do Cálculo Diferencial, em 1929; Sobre a aplicação de um Interpolação e integração numérica, em 1930 e 1932; Lições de Álgebra e Análise (vol. I, em 1935 e vol. II, em 1940); Cálculo Vectorial, em 1937; Conceitos Fundamentais da Matemática falecimento)).

fundado, no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia e Bento Caraça foi o seu Director desde a sua fundação até à sua extinção em 1946, ano em que o fascismo o demitiu de professor catedrático, provando assim, mais uma vez, ser inimigo da cultura.

Neste Centro, que foi o primeiro Centro de Estudos de Matemática formado em Portugal, Zaluar Nunes (mais tarde expulso do seu lugar de professor catedrático do Instituto Superior de Agronomia) regeu em 1939 -1940, um Curso de Cálculo das probabilidades; Augusto Sá da Costa , (também mais tarde afastado do ensino) regeu um Curso de Introdução à Economia Matemática, em 1941 – 1942, o Centro participou no Congresso de Córdoba, de 1944, tendo sido aprovada por unanimidade uma proposta de Bento Caraça, «preconizando a unificação e coordenação dos estudos demográficos sobre as duas nações ibéricas».

Bento Caraça foi um dos fundadores da revista Gazeta de Matemática, juntamente com António Monteiro, José da Silva Paulo, Hugo Batista Ribeiro e Manuel Zaluar Nunes; dirigiu sempre a Secção de Pedagogia e nela publicou vários artigos de divulgação de Matemática e História da Matemática.

Colaborou na fundação da Sociedade Portuguesa de Matemática, em 1940, tendo sido eleito várias vezes Delegado da Sociedade Portuguesa de Matemática aos Congressos da Associação Luso – Espanhola para o Progresso da Ciência. Em 1943, foi eleito Presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática.

Foi Presidente da Universidade Popular Portuguesa

Embora Bento Caraça não tenha sido um investigador matemático, ele foi sem dúvida um investigador no campo do ensino da Matemática.

De facto, com respeito à sua obra Lições de Álgebra e Análise, Sebastião e Silva (considerado por António Monteiro como o maior matemático português) declarou:

«Na verdade, ele não foi um investigador, isto é, não foi um criador de ciência. (…) O que devemos admirar, sim, é o seu esforço de autodidacta, as suas invulgares qualidades de trabalho, de que as “Lições de Álgebra e Análise”são um dos frutos. E sinto-me inclinado a admitir que, sob esse aspecto, a sua actividade foi realmente criadora; isto é, sou levado a pensar que Bento Caraça criou, efectivamente um estilo de ensino da Matemática, de que eu próprio sou beneficiário.

(…)

Esta obra marca, sem dúvida, de modo brilhante, uma presença na história do ensino da matemática em Portugal. (…) E recordo-me bem do impacto que produziu quando o 1º volume apareceu, pela primeira vez, em 1935. Surgia então como algo de inteiramente novo que causava surpresa e entusiasmo entre os jovens estudantes de várias escolas. Um seu primeiro aspecto que chamava a nossa atenção era o de apresentar a Matemática, como se fosse ma obra de arte, numa nova linguagem – viva, clara, incisiva, cativante.»

(Vértice, nº 412, 413, 414, Bento Caraça e o ensino da Matemática em Portugal, de J. Sebastião e Silva).

Vem a propósito lembrar uma frase de Gomes Teixeira:

«Um trabalho matemático é, para quem o sabe ler, o mesmo que um trecho musical para quem o sabe ouvir, um quadro para quem o sabe ver, uma ode para quem a sabe sentir.»

Na literatura matemática portuguesa, a obra de Bento Caraça, Conceitos Fundamentais da Matemática, ocupa um lugar de grande destaque, parece que nada há que se lhe compare no esforço para ensinar a pensar, despertar a curiosidade pela matemática e vencer o medo da matemática.

É notável o Prefácio que começa por assinalar duas atitudes em face da ciência:

«A ciência pode ser encarada sob dois aspectos diferentes. Ou se olha para ela tal como vem exposta nos livros de ensino, como coisa criadora, e o aspecto é o de um todo harmonioso, onde os capítulos se encadeiam em ordem, sem contradições. Ou se procura acompanhá-la no seu desenvolvimento progressivo, assistir à maneira como sendo elaborada, e o aspecto é totalmente diferente – descobrem-se hesitações, dúvidas, contradições, que só um longo trabalho de reflexão e apuramento consegue eliminar, para que logo surjam outras hesitações, outras dúvidas, outras contradições.

Descobre-se ainda qualquer coisa mais importante e mais interessante: - no primeiro aspecto, a ciência parece bastar-se a si própria, a formação dos conceitos e das teorias parece obedecer só a necessidades interiores, no segundo caso, pelo contrário, vê-se toda a influência que o ambiente da vida social exerce sobre a criação da ciência.

A ciência, encarada assim, aparece-nos como um organismo vivo, impregnado de condição humana, com as suas forças e as suas fraquezas e subordinado às grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e pela libertação; aparece-nos, enfim, como um grande capítulo da vida humana social.»

E a seguir, Bento Caraça declara:

«Será esta atitude que tomaremos aqui. A Matemática é geralmente considerada como uma ciência à parte, desligada da realidade, vivendo na penumbra do gabinete, um gabinete fechado, onde não entram os ruídos do mundo exterior, nem o sol, nem os clamores dos homens. Isto, só em parte é verdadeiro.

Sem dúvida, a Matemática possui problemas próprios, que não têm ligação imediata os outros problemas da vida social. Mas não há dúvida também de que os seus fundamentos mergulham tanto como os de outro qualquer ramo da ciência, na vida real; uns e outros entroncam na mesma madre.»

As várias edições que a obra Conceitos Fundamentais da Matemática já teve ( e certamente ainda terá outras) reforçam naturalmente a ideia de que a orientação escolhida foi a mais adequada, foi amais útil para matemáticos e não matemáticos. De facto, tem havido não matemáticos que lêem com grande interesse Conceitos Fundamentais da Matemática.

A organização e redacção desta obra põem em relevo a militância do Autor pela cultura e as suas elevadas qualidades pedagógicas. De facto, esta Obra dá a impressão, a quem a lê, de que o Autor está conversando com o leitor.

Assim, há títulos de parágrafos que são perguntas feitas ao leitor.

Por exemplo, na 1ª parte, Cap. I:

4 – Põe a vida primitiva outros problemas?

13 – Existem outros conjuntos infinitos?

16 – Pode fazer-se uma anatomia do infinito?

No Cap. II:

25 – Os dois conjuntos, dos números inteiros e dos racionais, têm as mesmas propriedades?

Outros títulos não são perguntas, mas sugerem perguntas, despertam a curiosidade:

Cap. I – O problema da contagem

1 – A contagem, operação elementar da vida individual e social;

3 – Factores Humanos;

9 – Prevalência

10 – Princípio da extensão;

14 – Correspondência no infinito;

15 – Primeiras consequências do salto no desconhecido;

28 – Princípio de economia;

29 – Duas aplicações do princípio de economia

Cap. II – O problema da medida

3 – A operação de medição, a propriedade privada e o Estado;

4 – E assim nasceu a geometria;

7 – O dilema;

8 – O aspecto aritmético da dificuldade

9 – Os moldes do novo campo numérico

12 – A negação da negação

13 – O método de estudo;

etc.

Cap. III – Crítica do problema da medida

3 – Um caso embaraçoso

4 – A encruzilhada;

8 – A insuficiência da aritmética;

etc.

O texto contém várias perguntas, por exemplo:

Cap. IV – Um pouco de história

7- Donde resulta o devir? E porquê as coisas se transformam constantemente?

8 – O que distinguia, em relação à questão que estamos tratando, a escola pitagórica?

etc.

O texto motiva um diálogo permanente entre o Autor e o leitor; prende constantemente a atenção do leitor.

A leitura dos Conceitos Fundamentais da Matemática devia ser recomendada, pelo menos, a todos os estudantes universitários em cujo currículo figure alguma disciplina de matemática.

Observações:

1) No Cap. III da 2ª parte, intitulado Equações algébricas e números complexos, no parágrafo 17 – O teorema fundamental da álgebra – considera-se a equação

E indicam-se as suas raízes:, o que está certo, mas diz-se: ,

O que não é exacto. O sinal devia ser substituído por um sinal que significasse aproximadamente igual, por exemplo,.

Este exemplo tem grande interesse, porque a aplicação do método de Cardan-Tartáglia conduz ao resultado

E, como no campo real não existe, podia levar a pensar que a equação dada não tem solução. Ora, isto não é verdade, pois foram acima indicadas, tais soluções reais.

Assim, é inevitável a ampliação do campo numérico e fica motivada a criação dos números complexos.

2) Tal motivação seria mais rápida, recorrendo-se ao exemplo dado por Rafael Bombelli (~1526 – 1573).

Na sua Álgebra, publicada em 1572 (embora escrita já em 1550), considera a equação

Donde, por aplicação do método de Cardan-Tartáglia resulta


Onde intervém , que não existe no campo dos números reais. No entanto, é imediato que a equação considerada tem raiz 4. Tem até todas as raízes reais:

4, e .

Bombelli venceu a dificuldade do aparecimento de uma raiz quadrada de um número negativo, tratando, “como se de um número se tratasse” e encontrando números reais u e v tais que

e, como obteve u = 2, a soma

Resultou igual a 4.

Vale a pena ler essa passagem na Álgebra de Bombelli e ler o comentário que Pedro Nunes faz do final do seu Livro de Álgebra em Arithmetica y Geometria, intitulado El Autor Desta Obra A Los Lectores (pp. 393 – 412)

José Morgado,

Centro de Matemática da

Universidade do Porto